16 de outubro de 1846, Hospital Geral de Massachusetts. O cirurgião John Collins Warren espera para começar a cirurgia de retirada do tumor que afeta a região da língua de Edward Abbott. Espera. Espera. Até que aparece um esbaforido William Thomas Green Morton – o cara. Mil desculpas pelo atraso, houve um problema com o inalador. Vamos aos trabalhos. Morton pede que Abbott respire por uma das aberturas do tal inalador de vidro. O paciente segue o comando, vai perdendo a consciência, não dá mais acordo de si. Tudo pronto. Cirurgia feita com rapidez, nenhum grito de dor. A plateia arregalada, incrédula. O cirurgião – normalmente blasé – em lágrimas. “Isto, senhores, não é nenhum embuste”, diz comovidíssimo.
Não é para menos. Se hoje não nos impressiona a cena de um sujeito sendo operado sem que quatro enfermeiros de 2m precisem segurá-lo na cama, é graças ao éter de William Morton – o cara. Marco zero da anestesia como a conhecemos, o episódio garantiu ao 16 de outubro o título de Dia do Anestesiologista. Felizmente, para qualquer entradinha na faca de que eu ou você venhamos a precisar, o doutor Morton chegou com pontualidade britânica.
Anestesia é coisa abençoada (embora particularmente me aflija: já me dei muito tapa depois de arrancar dente, por causa da agonia de não sentir). O problema é que nossa época, se já não fica arregalada, ficou dependente. Adicta. Viciou no amortecimento total dos sentidos. Em todos e de todos os sentidos. Viciou nas pequenas mortes, nas suspensões parciais de consciência que nos abrigam dos excessivos ais deste mundo: é o vidro preto que renega o pedinte, é o tarja-preta que apaga o estresse, são as revistas de vida alheia que cobrem o vácuo da nossa, são os programas de dor alheia que tiram o foco da nossa. É a bebida, a fumada, a cheirada ou a balinha que nos despe de pensamento. É a second life que usamos como máscara da first. É o reality que acompanhamos para substituir nosso show. É a rapidez tecnológica que enche de metas nossa vaziez biográfica. É a rede social que fantasia lindamente nossa solidão particular. São os aturdimentos, os desvios, os devaneios, os fazes-de-conta que elegemos como nossos procuradores, como substitutos do que já não tentamos achar, como manequins do que já não buscamos conseguir. É o muito que empregamos por nos contentarmos com pouco.
Vem chegando dezembro, nosso berço preferencial de promessas. Que entre elas (essas projeções também anestésicas) haja o propósito de levantar e nos encher de poeira para dar a volta por cima. Que sonhemos enfrentar o pau e a pedra para sair desse climão de fim do caminho. Que nossa obsessão de anestesia vá embora just in time para conseguirmos sentir nossa porção adequada, merecida, inspiradora e construtiva de dor.
2 comentários:
Que o ano seja o dos afetos, porque de tanta anestesia a gente passa pela vida e a sente muito pouco, quase nada. O Prozac foi apenas o primeiro.William Morton foi quase um profeta sem querer. Enfim, adorei o texto. Sorte para nós!
adorei o texto *-*
http://inlegau.blogspot.com
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