Um comercial recente da Nissan, ainda em transmissão, mostra a velhinha descongelando o marido após cinquenta anos de uma promessa: ela só o traria novamente à vida quando os dois pudessem comprar um carro japonês. Agora podem, IPI reduzido, altas promoções, tal e coisa. Ariovaldo, porém, mantido garotão por décadas de freezer, olha para a simpática senhorinha logo após o descongelamento e lasca: “Vovó!!...”. Ela faz cara de indignação desapontada, a gente acha engraçadíssimo, cai o pano. Programação que segue.
O comercial é engraçado, bem sacado, benfeitinho. Mas tem uma graça triste. Tem uma graça triste porque, por mais que brinque com o surreal fantástico, é de um real imediato que fala inevitavelmente. É de um descompasso temporal que fala inevitavelmente. O descompasso que pousa em alguns casais e aí se instala, empurrando para um lado o congelado, para outro o congelante. Um vai, outro fica; um evolui, outro permanece; um ganha maturidade, outro se mantém bebezão infinito. Feitiço de Áquila intransponível. Um dia, um susto, um átimo e os trens descarrilam, desparalelam, entrando o primeiro em progressão geométrica, o segundo na aritmética. As linhas do tempo atadas na marra, tangentes à força durante o período de sedução hardcore (alegrias de descoberta nos nivelam), tornam às condições normais de temperatura e pressão: cada um em seu ritmo, com seu passo, com sua corrida ou demora. Programação que segue.
E nisso se desenha a história do ogro com síndrome de Gabriela (nasceu assim, cresceu assim, é mesmo assim, vai ser sempre assim) que vira estátua nos doze anos mentais e casa com a colega de escola que, aos trinta, já leu e refletiu por pelo menos quarenta e sete. Nisso se constrói a fábula da princesinha mimada que acumula duas décadas de luta pelo sapato ideal, e se une ao moço classe-médio que acumula duas toneladas de labuta pelos gols do sindicato. Nisso se conta o conto em que um dos apaixonados, ciumento, põe-se a afundar o trabalho do outro em vez de exaltá-lo; nisso se canta a cantiga na qual ou o rapaz ou a senhorita confidencia à mãe detalhes escabrosos do casamento, em vez de embalá-los na discrição do amor maduro; nisso se tece a trama em que ele ou ela paira leviana ou indiferentemente acima do solo comum, em vez de fazer companhia a ela ou ele que continua focadíssimo na terra e na secura do sol a sol. Há os apegados a quadrinhos e a heróis que se ligaram a corações incapacitados para infâncias. Há os seres com 820 anos de rabugice que noivaram com criaturas de alta leveza e plena adolescência. Há pré-históricos grudados em renascentistas. Há medievais colados a surrealistas. Românticos fazendo par com modernos. Futuristas montando dupla com barrocos.
O mal do que não começa junto é a pouca chance de que junto acabe. O pouco jeito de que, ainda em vida, não se fique órfão um do outro.
Um comentário:
Ogro com síndrome de Gabriela? Que história macabra é essa? Um transformogro??????
Em relacionamentos longos esse descompasso temporal realmente acontece. Muito boa a abordagem vinda de um simples comercial de TV.
Em alguns momentos a pessoa por quem o amor surgiu não existe mais.
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