Se há um troço bonito no confinamento, é o fato de as pessoas ficarem reduzidas à sua forma mais simples, como as frações. Não a mais simples de mais simplória, e sim de essencial – essa coisa tão linda. De repente foi descoberto que você é perfeitamente capaz de pensar e trabalhar usando uma samba-canção do Mickey, em vez de dois sufocos de manga comprida e um pedaço de pano amarrado no pescoço. De repente você é competente descalça e com o rosto pintado só de luz; incrivelmente, não há qualquer necessidade de se equilibrar a 15 cm do chão, até pelo contrário, já que o cérebro pode dar seus passos sem lidar com um bizarro desvio de foco. De repente os ouros e pérolas ficaram na gaveta, tolos, inúteis, só mais uma tranqueira a ser desinfetada em caso de saída. Pedaços de pano bem basiquetes, sim, riem da cara dos diamantes na condição de acessórios do momento – embora nunca, em hipótese alguma, amarrados no pescoço.
Não desgosto de enfeites ou da rotina de pensar a roupa para outrem: a blusinha temática de mandar mensagens, a alegria quase infantil de estrear um colar fabuloso. Divertido. Mas sou professora; meu dress code é fluido e vário, ninguém me cobra saltos que não sejam de fé, ninguém me faz passar as maledettas mangas compridas – só passo matéria e exercício –, deixo pros boletins o vermelhinho que não uso nos lábios. Pelo menos ESSAS amofinações não pesam sobre uma classe já naturalmente amassada e descabelada. Fico pensando mais nas carreiras atochadas pelas mil regrinhas de superfície, esses nhenhenhéns da "boa apresentação" profissional, que queimam mais tempo, conforto e calorias do que os neurônios gostariam de admitir. Com a eliminação momentânea dos escritórios, o que conta, o que fica? Ficam só as ideias, as palavras lançadas com ou sem batom, digitadas com ou sem esmalte; ficam as sinapses firmes e fortes, mesmo de pijama. Ficam as essências desmascaradas do artifício. Só as inteligências. Os talentos. As emanações.
Sei: é um pensar romântico, tio Platão estaria orgulhoso, mas a coisa não é tão plana assim. Não é, claro. Still, por mais que a quarentena nos chateie e tire de nós a sociabilidade que nos humaniza como espécie, também (re)força a autoconsciência que nos humaniza como indivíduos, uma vez afastados dos personagens para consumo externo. Se cada um de nós costuma ser pelo menos dois – uma pessoa de andar em casa e outra de sair –, neste instante praticamente só nos resta o eu mais íntimo, para alívio das almas quietas e transtorno das derramadas. Evidentemente, há as casas (não poucas) em que o eu está íntimo mas não está isolado, as casas em que muitas individualidades atropelam suas aflições, as casas em que sequer existe o luxo de uma mudança de realidade. Falo aqui especificamente, porém, de um mundo classe-médio que está se confrontando na marra com o ridículo de seus consumos, com o patético de seus códigos, com a piada de suas etiquetas, quando a primeira coisa que se faz é arrancar o supérfluo ao primeiro sinalzinho de apocalipse.
2020 nos ensina dando livradas de capa dura na cabeça, como o professor Snape, mas consegue passar lá suas liçõezinhas – que enxergamos porque não sobreviveríamos de outra forma. In the end, the love you take (de si próprio, inclusive) equivale ao que você vem a ser ou continua sendo sem janela, sem live, sem treino, sem uber, sem story, o gosto que fica quando o volátil evapora, o noves-fora de toda a construção de dentro. Você – você realmente – é o que sobra após o contexto e a plateia.
2 comentários:
É isso,amiga. Ora somos máscara, ora somos self. Entrar em contato com a essência, é uma libertação. O legal é escolher trabalhar onde pode vestir o que não te despe de si mesma. São as nossas escolhas. Débora Helena.
Que fofo, Debinha, superamei!! <3 <3
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