domingo, 17 de maio de 2020

Internamente

cadeira, cátedra, descalço

Se há um troço bonito no confinamento, é o fato de as pessoas ficarem reduzidas à sua forma mais simples, como as frações. Não a mais simples de mais simplória, e sim de essencial – essa coisa tão linda. De repente foi descoberto que você é perfeitamente capaz de pensar e trabalhar usando uma samba-canção do Mickey, em vez de dois sufocos de manga comprida e um pedaço de pano amarrado no pescoço. De repente você é competente descalça e com o rosto pintado só de luz; incrivelmente, não há qualquer necessidade de se equilibrar a 15 cm do chão, até pelo contrário, já que o cérebro pode dar seus passos sem lidar com um bizarro desvio de foco. De repente os ouros e pérolas ficaram na gaveta, tolos, inúteis, só mais uma tranqueira a ser desinfetada em caso de saída. Pedaços de pano bem basiquetes, sim, riem da cara dos diamantes na condição de acessórios do momento  embora nunca, em hipótese alguma, amarrados no pescoço. 

Não desgosto de enfeites ou da rotina de pensar a roupa para outrem: a blusinha temática de mandar mensagens, a alegria quase infantil de estrear um colar fabuloso. Divertido. Mas sou professora; meu dress code é fluido e vário, ninguém me cobra saltos que não sejam de fé, ninguém me faz passar as maledettas mangas compridas  só passo matéria e exercício , deixo pros boletins o vermelhinho que não uso nos lábios. Pelo menos ESSAS amofinações não pesam sobre uma classe já naturalmente amassada e descabelada. Fico pensando mais nas carreiras atochadas pelas mil regrinhas de superfície, esses nhenhenhéns da "boa apresentação" profissional, que queimam mais tempo, conforto e calorias do que os neurônios gostariam de admitir. Com a eliminação momentânea dos escritórios, o que conta, o que fica? Ficam só as ideias, as palavras lançadas com ou sem batom, digitadas com ou sem esmalte; ficam as sinapses firmes e fortes, mesmo de pijama. Ficam as essências desmascaradas do artifício. Só as inteligências. Os talentos. As emanações.

Sei: é um pensar romântico, tio Platão estaria orgulhoso, mas a coisa não é tão plana assim. Não é, claro. Still, por mais que a quarentena nos chateie e tire de nós a sociabilidade que nos humaniza como espécie, também (re)força a autoconsciência que nos humaniza como indivíduos, uma vez afastados dos personagens para consumo externo. Se cada um de nós costuma ser pelo menos dois  uma pessoa de andar em casa e outra de sair , neste instante praticamente só nos resta o eu mais íntimo, para alívio das almas quietas e transtorno das derramadas. Evidentemente, há as casas (não poucas) em que o eu está íntimo mas não está isolado, as casas em que muitas individualidades atropelam suas aflições, as casas em que sequer existe o luxo de uma mudança de realidade. Falo aqui especificamente, porém, de um mundo classe-médio que está se confrontando na marra com o ridículo de seus consumos, com o patético de seus códigos, com a piada de suas etiquetas, quando a primeira coisa que se faz é arrancar o supérfluo ao primeiro sinalzinho de apocalipse.

2020 nos ensina dando livradas de capa dura na cabeça, como o professor Snape, mas consegue passar lá suas liçõezinhas  que enxergamos porque não sobreviveríamos de outra forma. In the end, the love you take (de si próprio, inclusive) equivale ao que você vem a ser ou continua sendo sem janela, sem live, sem treino, sem uber, sem story, o gosto que fica quando o volátil evapora, o noves-fora de toda a construção de dentro. Você  você realmente  é o que sobra após o contexto e a plateia.

2 comentários:

Unknown disse...

É isso,amiga. Ora somos máscara, ora somos self. Entrar em contato com a essência, é uma libertação. O legal é escolher trabalhar onde pode vestir o que não te despe de si mesma. São as nossas escolhas. Débora Helena.

Fernanda Duarte disse...

Que fofo, Debinha, superamei!! <3 <3