Vejam, não me entendam mal, eu gosto de vida, mas prefiro as horas mortas. Até porque é injustíssimo o nome que lhes dão: não são nada mortas, estão apenas desabitadas de gente, porém plenas de morcegos, grilos, passarinhos. Nas horas mortas há o silêncio das vozes e das inquietudes, das discussões, das televisões, dos churrascos, dos telefones, dos interfones, dos abre-fechas de elevador, das campainhas, dos porteiros, dos carrinhos de compras, dos ajeitamentos de móvel, das percussões do vizinho, das trilhas sonoras impostas pelo vizinho. Existe-se mais devagar nas horas mortas, pisa-se mais leve, não se vão despertar as angústias gerais que dormem; os homens, as mulheres já cessaram ou ainda não reengataram de viver em voz alta, não recomeçaram o celular aos brados na janela ou a videochamada aos brados no apartamento de baixo (por que o foro íntimo precisa ser tão coletivo, Senhor?), não reiniciaram as broncas e os jogos com as crianças, que também não retomaram as birras, os gritos, os choros, as correrias. As notícias bombásticas apenas engatinham no dia, ou já cansaram; quase que não aconteceram, de tão sonolentas a este ponto ou por enquanto. Ah, o silêncio, o silêncio. O silêncio do oxigênio fresquinho, o silêncio que é oxigênio refrescante, raro, bom. A possibilidade brevíssima do silêncio.
Vejam, não se assombrem, eu amo as cores vivas, mas não resisto à penumbra das horas mortas. Os instantes em que o sol é macio, quase destropical, e veste de carícia amarelada os detalhes dos prédios sem doer no olho. Os tons carinhosos à vista com que o céu se crepuscula. O azul de muito cedo ou muito tarde, limpo de tudo, recém-espremido ou recém-evaporado. A delicadeza sem estridência, a beleza sem agressividade, nada das tintas irritantes e suadas do meio-dia, nada do reflexo excessivo na calçada branca; veludo, somente veludo, somente primavera e outono. Matizes também têm seus silêncios, seus sopros, também caem de temperatura fora de horários comerciais – como os ventos. Todos os sentidos são abordados com menos audácia nessas dobras do dia; e ao mesmo tempo, poupados da violência dos estímulos (poupados da fumaça, da buzina, do microfone das lojas, da fúria de vendedores e termômetros), conseguem perceber mais, estão aptos para as essências úmidas da terra, para os mais minuciosos vertebrados e invertebrados que ciciam barulhinhos. Momentos de baixo apelo externo são a inteligência do corpo.
Vejam, não me mal interpretem, eu quero que as pessoas vivam – mas não consigo reclamar de que as ruas se tenham enchido de horas mortas. É com culpa que me animo a rejeitar a normalidade, e no entanto, sem o desejar, rejeito-a; confesso gostar da introversão do mundo, da espécie de mudez pujante que se espraiou por avenidas obrigadas a parar, do vibrar de unidade da multidão oculta, embalada individualmente. Gosto do planeta hibernado, desperto mas recolhido, mais pensante, mais filosófico – como eu secretamente gostava, em criança, dos apagões que nos uniam, nos reestruturavam a realidade e nos forçavam a descontinuar o que estivéssemos fazendo de rotineiro. Gosto do planeta à luz de velas, confrontado consigo mesmo, trabalhando a criatividade e retrabalhando suas lógicas; não sinto orgulho de preferi-lo assim, porém sei que não há nisso pulsão de morte e sim, ao contrário, de sossego rebrotante. (Não, eu não passei os últimos meses em Netuno e sei bem que muitas atividades dependem do não isolamento, do não silêncio; daí mesmo me vem a culpa – embora eu não possa ter a pretensão de que meu gosto pela quarentena afete ou deixe de afetar os protocolos de segurança. Como lidar com os remorsos de minha preferência e adaptação involuntárias? Tentando ser útil a alguéns.)
Vejam, não me mal entendam, eu gosto de gente; somente sou incapaz de evitar me sentir confortável em sua ausência.
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