A matéria do Razões para Acreditar é de 2018, mas foi resgatada agora por motivos dilacerantes. O jovem Renato Siqueira de Castro (que tinha 15 anos na ocasião da reportagem), morador de uma favela em Duque de Caxias, RJ, ainda na infância tomou a decisão de virar bombeiro e salvar vidas, influenciado pela angústia de ver o barraco da mãe pegar fogo. Quando mais tarde, no entanto, brigas constantes com a irmã o levaram a deixar a casa do pai e trabalhar como engraxate para assumir o aluguel de um espaço próprio, o garoto acabou largando os estudos. Mas no meio do caminho tinha um projeto social determinado a enviar jovens negros da periferia para Wakanda, embarcados em cadeiras de cinema – e lá foi Renato assistir a Pantera Negra, lá foi Renato para um reino africano desenvolvidíssimo, moderníssimo, riquíssimo, e riquíssimo especialmente em ciência e tecnologia de ponta capaz de botar qualquer nação estrebuchante de inveja. Batata. O contato empoderador da ficção bateu fundo na realidade: "Sem a escola eu não consigo nada. Parei e pensei: 'Pô, melhor eu voltar a estudar'", declarou o menino, de ânimo remotivado. E voltou – num colégio com menos bagunça, segundo ele. Ou terá sido simplesmente a perspectiva interna de futuro que se reorganizou?
Assim como Renato, incalculáveis crianças, adolescentes e jovens negros certamente terão sido realinhados pelo filme dentro de suas próprias visões de possibilidades, dentro de seus autoconceitos de talento, força, beleza. Intermináveis almas que habitam corpos negros, após terem estado na celebração de poder africano que é Wakanda – a extraordinária, sedutora, embriagante, vibrante, sábia, potente, incrível Wakanda –, sem a menor dúvida se desbagunçaram da bagunça mental em que o mundo eurocêntrico costuma atirá-las, ao castrar-lhes a chance de perceber sua plena lindeza, sua plena capacidade. Infinitões de gurias e guris que amavam os Vingadores, mas não se viam na lourice caucasiana do Capitão, na ruivice da Viúva, nas referências nórdicas do Thor, ganharam não só um modelo de herói à sua semelhança como uma COMUNIDADE de heróis à sua semelhança: uma nação inteirinha, um elenco todinho negro; um contexto em que personagens brancos são, além de raríssimos coadjuvantes, "meninos a serem consertados". Ganharam ainda mais: uma terra na qual a guarda é inteiramente feminina (e sua principal representante, Okoye, não deixando de ser apaixonada e amorosa, nem por isso cede à chantagem do crush, e garante que abriria mão dele em prol de suas convicções sem nem piscar); o maior gênio científico é também uma mulher; o poder não é simplesmente herdado de papai, mas conquistado no suor (o próprio, não o alheio); a evolução tecnológica ultrapassa em anos-luz a do resto do mundo, incluindo os metidíssimos States; até o vilão, apesar dos métodos detestáveis, apresenta motivações e questionamentos legítimos. Não é pouco; é forte, é um marco. Foi e continua sendo uma abertura de Mar Vermelho para milhões de olhinhos desacostumados a se enxergar em posição de superioridade.
Um reino tão colossal merecia o privilégio de ser governado por seu maior herói, e foi: T'Challa que era Pantera Negra que era Chadwick Boseman. Ninguém, imagino, se recuperou ainda do choque não apenas de seu falecimento, mas igualmente da certeza de que o ator encarou quase todas as batalhas de seu papel mais importante quando, no lado de cá das telas, a guerra já era muito mais infinita. De onde tirou aquela abundância de vigor que não permitiu que a doença fosse um ultimato? Como lutou com tanto ímpeto? Como defendeu Wakanda e o mundo com tanta intensidade? Infelizmente não conheci Chadwick em pessoa, porém, a julgar pelos personagens que o marcaram – basicamente pioneiros negros, desbravadores, guerreiros nas mais diversas acepções –, arrisco um palpitezinho a respeito de sua coragem tamanha: ele sabia. Sabia, como menino negro que foi, como criança negra que provavelmente cresceu com pouquíssima representatividade nas artes, o quanto seu trabalho avassalaria de vida a vida das atuais e próximas crianças negras. Sabia que havia milhões precisando espelhar-se, precisando reconhecer-se, orgulhar-se, catapultar-se, receber endosso para amar suas características e origens, para abraçar como reais suas grandezas e suas chances. Sabia que havia Renatos; muitos, incontáveis Renatos e Renatas que mereciam renascer aos próprios olhos, diante de suas opiniões mesmas, e ganhar um estímulo novinho para se admitir como reis e rainhas de seus superpoderes exclusivos.
Que honra tê-lo tido entre nós, T'Challa, e que felicidade ter testemunhado a abertura de seu reino de possibilidades para o mundo. Diante da existência de tantos meninos e meninas que ainda não conhecem a riqueza de suas possibilidades, sabemos que não poderemos jamais cruzar os braços – a não ser, claro, que seja para dizer:
Wakanda forever.
Nenhum comentário:
Postar um comentário