Hoje se completam 305 aninhos de um alemão que eu até há pouquito não conhecia, mas que já considero pacas pela descrição de um fenômeno fofíssimo. O introvertido Johann Gottlob Leidenfrost percebeu e relatou que: quando uma gotinha é jogada sobre uma superfície quente, mas de um quente próximo a seu ponto de ebulição, ela faz aquele tssss!, ferve e some; isso mais ou menos sabemos (ou intuímos). Só que – vejam que legal –, se a temperatura da superfície for muuuuito maior que o ponto de ebulição do líquido, a gotita não vai evaporar feito doida; na verdade, ficará deslizando lindamente sobre uma caminha de vapor (NHOM!). Pelo que entendi, um bocadinho do líquido evapora e forma essa fina camada em que o restante da gota permanece "flutuando", como se em sua micronuvem particular. A ebulição não é rapidíssima porque o vapor não conduz o calor com eficiência bastante para o líquido que nele passeia. Não sei vocês, mas eu fiquei totalmente devastada de fofura ao imaginar um pinguito – de ares soberanos – dando uma volta com seu hoverboard num hot resort.
Além da fofura, amei a filosofia e a metáfora da coisa (metáforas: trabalhamos com). Uma infinidade de vezes, vivemos também esse aparente paradoxo apontado pelo cientista, essa quase maluquice do Efeito Leidenfrost: quando o tormento ainda se encaixa em nosso universo com alguma razoabilidade, quando é forte porém compreensível, destrinchável, abordável com qualquer recurso – então conseguimos reagir assim que ele nos toca; então conseguimos receber e perceber o impacto como algo real, que nos diz respeito e nos cobra posição. Mas quando os fatos nos atropelam em temperatura irrazoável, doidos demais, febris demais, surreais demais, uma partezinha nossa parece desligar-se de nós em mecanismo de defesa, e sobre essa película de anestesia é que somos capazes de pairar ainda respirantes, até supostamente imperturbáveis. Não é que não sejamos perturbados, ao contrário: somos tão duramente afetados à primeira vista que a própria perplexidade vira almofada, torna-se a cortina (ou colchão) de fumaça que ameniza o espatifamento da psiquê – não impede a ferida, mas impede a plena consciência do abismo.
É piração, eu sei, porém não pude evitar a comparação do Efeito Leidenfrost com a lógica protetora do TDI, o Transtorno Dissociativo de Identidade; aqui, em oposição à história da gotinha que ganha um "escudo de nuvem" contra o calor destruidor, não há fofura nenhuma, embora não se possa deixar de ver alguma beleza triste e terrível no ato de o cérebro inventar eus secundários e terciários a fim de algodoar a integridade do eu principal (sim, é o que chamavam outrorinha de "dupla personalidade" – termo pouquíssimo abrangente, mesmo porque a personalidade não precisa ser dupla: pode perfeitamente desdobrar-se em dezenas, com nomes, idades, gêneros, orientações sexuais, gostos, profissões, biografias incrivelmente diferentes). TDI genuíno é coisa rara; dá-se em casos muito, muito, muito específicos em que um trauma, porque doloroso em excesso, faz a vítima inconscientemente dilacerar-se por dentro. É sua tocante estratégia mental para metabolizar o imetabolizável, conviver com o inconvivível – uma angustiante poesia do luto. Acho fascinante (quem não?) e desolador, assim como horrivelmente desolador cada um de vários mecanismos outros a que a mente se vê obrigada pela ofensiva alheia: o coraçãozito aterrorizado de pisar fora do armário, a pele que não se abraça como negra para não ter de reconhecer sobre si os efeitos do racismo, os seios e úteros que não se engajam na luta feminina e reforçam o lado do agressor, os braços e pernas dotados de habilidades lindas e temerosos demais para desenvolvê-las, porque não é o que a família espera, o que meus pais vão pensar. Ainda que não levadas à dissociação clínica e extrema do TDI, milhares, milhões de gotas dos nossos arredores trafegam por aí escudando-se da realidade atrás de facetas suas, negando-se a pôr os pés no chão enquanto se blindam de suas películas. Fogem a certas dores imediatas, é vero; em algum momento inevitável, no entanto, esbarrarão com as mesmas ameaças e os mesmos calores, e por fim inexistirão – passando pela dor adicional de não se terem cumprido.
Cumprir-se envolve, também, saber que a chapa sempre estará quente.
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