Coisa que me comove demais de muito, além das histórias que vivem na sombra (de que ontem falei), são os esforços inenarráveis de várias dessas histórias para sobreviverem à sombra; a paixão indestrutível de não perecer, de permanecer, gritar-se, dar um chapéu nos carrascos, driblar todas as vigilâncias farpadas e chutar a gol. Descobri, por acaso e por exemplo, um trabalho deslumbrantíssimo de resgate de vozes que o horror não conseguiu emparedar: a pesquisa de mais de três décadas realizada pelo maestro italiano Francesco Lotoro, que incessantemente busca e executa composições feitas por prisioneiros de campos nazistas. Lotoro corre atrás das preciosidades em acervos de consulta pública, memoriais judaicos, comunidades ciganas, casas de sobreviventes do Holocausto e/ou de seus descendentes, num empenho artístico, humanitário e arqueológico que me faz o coração querer apertar o dele contra o peito. Uma das melodias e memórias tocantíssimas é a do tcheco Rudolf Karel – encerrado e torturado por dois anos na prisão Pankrác e, em seguida, enviado ao campo de concentração de Terezín –, que escrevia suas partituras em papel higiênico com o carvão que lhe davam para tratar disenteria. Karel chegou a produzir, nesse cúmulo de condições inóspitas, uma ópera de cinco atos (Three hairs of the wise old man) em 240 folhas de papel detalhadinhas, passadas discretamente a um guarda portador de humanidade. Sei nem o que diga. Só transbordam aplausos de pé para essa potência de vida que nunca se ajoelha.
Por mais que a cadela do terror, da crueldade, do fascismo esteja sempre no cio, felizmente não faltam provas de que a irrepresável vontade humana lhe responde quilometricamente teimosa, resistindo (ao menos por dentro, para compensar nossa estrutura física tão vulnerável) a todas as suas dentadas. Diz-se que Santa Cecília, depois de não morrer asfixiada por vapores ferventes a mando do prefeito de Roma, e de não ser decapitada com três machadadas no pescoço – OK, às vezes nossa estrutura física também não é tão vulnerável assim –, dava conselhos carinhosos a quem ia visitá-la em seu leito de pré-morte e entoava louvores, o que lhe valeu o título de padroeira dos músicos. Antonio Gramsci redigiu milhares de páginas de teoria política, filosofia e análise cultural enquanto estava nos cárceres fascistas, sendo que apenas após a Segunda Guerra (que Gramsci, morto em 1937, sequer "pegou") foi publicado todo esse colosso de pensamento. Anne Frank... bem, vocês sabem. Tomás Antônio Gonzaga cantou, dirceumente, liras e mais liras à sua Marília nos dois anos de aprisionamento na Ilha das Cobras. Victor Jara, poeta popular chileno assassinado pelo governo Pinochet, cantou literalmente, alto e forte – para animar seus companheiros –, enquanto os militares destroçavam suas mãos a coronhadas. Julio Fuchik, jornalista conterrâneo de Rudolf Karel e tão porreta quanto, na mesma prisão de Pankrác fez anotações em papeizinhos de maços de cigarro, devidamente contrabandeados para fora; em 1947, quatro anos após o enforcamento do autor, sua esposa Gusta (que foi encarcerada em galpão próximo ao de Julio, e para quem ele cantava a fim de avisar que ainda estava vivo) publicou os escritos no tocante Testamento sob a forca. Gente renhida, criativa, criadora, rija e topetuda mesmo na fraqueza; gente interminável. Forças de permanência que, ao contrário de seus algozes, deram jeitinho de simultaneamente ficar e fazer falta.
Obviamente não estou dizendo, com essa meia duzinha de exemplos entre os milhões disponíveis na História, que somente os vigorosos, resistentes e "produtivos" fazem falta, ou que é necessário passar assobiando pelo horror supremo da tortura para ter legitimadas sua existência e sua memória. Não; toda violência destrói uma experiência insubstituível de mundo, nenhuma dor precisa ter enredos de heroísmo para ser válida. Toda dor de injustiças e opressões é uma dor mártir. Mas é riquíssimo e essencial que haja, entre essas dores, as que berram testamentos, as que registram para a posteridade a extensão do absurdo, as que falam pelas que não puderam, as que chamam luz sobre eventos de que os culpados sempre desejam apagar o arquivo. É lindo e grandioso que algumas vozes mantenham o encargo de ecoar por suas irmãs de luta e timbre: embaixadoras de classe, representantes de turma, líderes sindicais de narrativas e aflições recorrentes na espécie. Quem permanece coletiviza. Potencializa. Torna-se relicário de lágrimas e risos que eletrocardiogramiza o coração duma época.
Milênios, milênios, milênios e (é para nos esperançar que estão aí essas vozes) a morte continua sem poder frear o que não tem freio. A vida – sempre! – encontra um meio.
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