Sim, também confesso: eu espio.
Espio repetidamente. É pilhar uma intimidadezinha dando sopa e contrabandeio
mesmo o olho pra dentro da cena (em geral noturna), ansiosa por tirar dali umas
tais quais inspirações palpitantes. Espio com alegria e nenhuns escrúpulos.
Espio.
Não, não é o que vocês estão
pensando. Sou uma voyeur de delicadezas.
Quê? pois é: espiono o delicado. Coleciono
o delicado. Cato na rua as varandinhas com flores – aquelas varandinhas
caquéticas que não servem nem pra tombamento do Iphan, mas que ganham ar de
sobrado oitocentista quando enfeitadas de pétala por um coração fêmeo. Essas
varandinhas têm a dignidade sobre-humana de quem se recusa mártir vivendo o
martírio; têm a dignidade funda da beleza natural e insistente. Cato também as
bijus escondidas das moças que trabalham embrulhadas numa feiura de uniforme, e
no entanto não saem à rua sem um protesto íntimo de originalidade sua, só sua. Cato
com gosto especial as minúcias de relação, migalhas espalhadas entre um e outro
minuto desatento: uns dedos que se confundem sobre a mesa do restaurante, num
casal de velhinhos; um irmão mais velho que leva a si e ao caçula para a escola,
direcionando-o abraçadamente pelo ombro; um filho que se distrai da idade marmanja
esquecendo a cabeça pousada na da mãe; uma mãe que passa conversando filosofias
com o bebê de seis meses que a olha deslumbrado. Umas assim pequenas delícias
feitas por instinto ou vocação, por índole de ternura: reúno-as. Reúno-as
silenciosamente, metendo o bedelho na entrega alheia como quem invade na ponta
dos pés. A mais venerante das bárbaras. A mais discreta das visigodas.
Mas falei lá em cima de cenas
noturnas, e tenho o dever de redesapontar quem me lê. O que sou é espiã
daqueles detalhes caseiros que, da rua, só à noite se enxergam bem, pelo
contraste que providencialmente se forma entre a escurice externa e a janela –
palco iluminado. Seguindo a pé, de carro ou ônibus, encanto-me de me imiscuir
um bocadinho na fresta da cortina aberta e flagrar uma parede colorida (não há
casita visitada que não se dê o luxo de uma parede colorida!), uma falsa
porcelana coroando não sei que móvel, um ventilador de teto kitschmente
embarrocado, um mensageiro dos ventos tlim-tlinando na grade, uma luminária
desabrochante, uma prateleira, um adesivo. Mesmo a pobre das pobres residências
não deixa de pôr sua flor no cabelo, não se mostra nunca nua de todo. Há fotos.
Há quadros. Há gatos. Há plantas. Há uma qualquer coisa de habitada, de
possuída para além do terreno e do CEP. Há uma etiqueta interessante de alma
que grita ou cicia uma presença.
Nisso fica minha esperança: pessoas
(nas condições normais de temperatura e pressão; pessoas não comprometidas
pelas piores exceções viciadas ou psicopáticas) nunca abdicam de uma beleza
específica no ato de ser pessoas. Pessoas não desistem de uma decoração de
mundo. Não abrem mão da delicadeza possível. Persistem na ternura acessível.
Insistem na propagação de suas graças, de suas modinhas, de suas escolhas, crentes
de que viver – merecendo o verbo – é fazer arquiteturas que furem a brecha do
abismo.
E é.
2 comentários:
Fernanda, pelamordeDeus, eu não te conheço pessoalmente, só trabalhei com Fábio e, através dos posts dele fiquei conhecendo esse teu blog e... preciso dizer! O que vc escreve é um encanto, é purificador, ilumina! Coisa mais linda! Um alento de beleza num mundo de muitas leituras miseráveis. Toda vez que passo aqui fico agradecida. Vou compartilhar, tá? As pessoas precisam conhecer. É lindo.
Somos duas espias kkkkkk. Espiar a vida, colher idéias, enfim...
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