Todo mundo ficou bestão quando Bento XVI disse que iria
renunciar, e não faltaram os indignados querendo satisfações e cuspindo
veredictos: que era um despautério não chegar ao fim natural do papado, que o
papa anterior estava bem mais doente e não recaiu na covardia, que isso e
aquiloutro pouco abonadores para o pontífice. Aos críticos não solicitados,
sugiro que vão plantar abobrinha transgênica no sótão. É muita – ah! mas é
muita – petulância um qualquer de nós, do alto de nosso cotidiano tão apenas
nosso, de nossa agenda tão pouco repleta de compromissos papais, de nossa tão
grande não-responsabilidade sobre a chefia de uma religião universal, erguer o
dedo mindinho para fazer um milésimo de cobrança a respeito da decisão. Tem
graça. É coisa que, sejam lá quais forem os motivos (e hão de ser parrudos),
cabe exclusivamente ao agora papa emérito, que vive e viveu suas agruras de
modo intransferível. Isso passou; ficou foi o exemplo que, esse sim, é da conta
de todos. Ficou o recado de que às vezes é mesmo necessário ignorar a falta de
precedentes nos últimos 600 anos, e ser o primeiro do grupo a confessar que não
dá mais, que está doendo. Às vezes não dá para fugir ao fato de que permanecer
não é sempre útil – não quando breca alternativas possivelmente melhores. Às
vezes é preciso inovar com a humildade revolucionaríssima de não nos
reconhecermos como solução.
Porque fomos gerados e paridos e amamentados com a mania de
que somos a solução. E normalmente somos parte dela: acredito com força na eficiência
de cada qual pegar sua rédea e realizar tudão que lhe compete, sem terceirizar
culpas e deveres. Mas sabe aquela oração do AA – “coragem para mudar as coisas
que posso, serenidade para aceitar as que não posso e sabedoria para distinguir
umas das outras”? pois é. Existem umas e outras. Existe o roer a corda por
medinho e existe o “eu paro aqui, você continua” de quem se sabe pesado demais
para uma estrada de levezas. Existe o amarelar por preguiça e existe o engolir
em seco o próprio orgulho de quem se percebe incompatível com a política da
firma. Existe o “that’s all, folks” do casal que se desfaz porque um gosta de jabuticaba
e o outro de graviola, e existe o marido ou esposa que abre mão do casamento
sangrando porque o cônjuge é abusivo com os filhos. Existem o chutar o balde e
o abdicar de honra; o whatever e o adeus às armas; o dar de ombros e a escolha
de Sofia. Há um virar de costas temperado no “dane-se” e outro, na extrema
consciência do “livro-te”.
E haja peito para estrangular o mero continuar que não é
virtude. Para vestir o sair que também é, volta e meia, o generoso, o lúcido, o
autoanalista dos atos. Sair como a verdadeira mãe do menino “ameaçado” de ser
partido ao meio por Salomão; sair como o professor que entra em depressão e se
reconhece impotente para guiar a turma; sair como o cientista que, viralmente
contaminado por gripe nova e faminta, se bota de quarentena até a morte. Sair
como o pai que desiste de guerrear pela guarda do filho quando a diretora pilha
o moleque chorando na escola. Sair como o general que ordena retirada
estratégica quando vê a fome civil pilhando o mercado. Sair como o advogado que
admite conflito de interesses, como o psicólogo que se adivinha inadequado para
um nó tamanho, como o amante que percebe na amada o antigo amor irresolvido,
como a miss que percebe na coroa a forca da beleza compulsória.
Só da vida é que não. Só da vida é que nunca. Na vida é que só se entra, às vezes, depois que se sai da história.
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