É, tenho certeza, uma cena comum.
O inspetor lá da escola justamente terminava de engolir os últimos bocados de
meio-dia quando a moça da secretaria veio agitá-lo para um chamamento da
direção – anda, anda. O pobre recusou-se serenamente: estava almoçando. E
ponto. E ainda ia escovar os dentes muito exemplarmente, antes de qualquer
contato humano e, sobretudo, chefiador. Entrou ele num fim muito calmo de
refeição enquanto outra professora comentava – por isso é que é duro almoçar no
local de trabalho; não se sente que está almoçando, não se percebe que você está almoçando. Coisa mais natural da galáxia é
invadir-lhe o território gástrico com os iguais e contínuos perrengues, como se
a digestão fora por direito uma extensão das necessidades empresariais. Você é
preciso? é preciso agora – comer é
para os fracos. Todo um possível bem-estar que o torna mais produtivo após a
almoçança benfeita não está previsto no gráfico de superávits.
Pois comigo não, violão. Digo que
o inspetor me ganhou uns mil pontos de conceito depois de delimitar gentilmente
seu espaço estomacal. Sou bem assinzinha. Os desesperados de pressa hão de
desculpar-me: estou no grupo que não topa celular ligado na mesa enquanto
saboreio meu cardápio (por sinal que não topo celular ligado enquanto faço
coisa alguma; mas isso é outra história). De preferência, nem levanto do prato
para atender ao telefone fixo. Muito menos levo refeição para a frente do
computador – a não ser (contragostomente) na escola, onde agarrar um PC vazio é
questão de honra, de sorte e de escrever ou não escrever a lugarzice do dia. O
mais que admito é conversa e televisão; gosto, inclusive; só também não quero
saber de assunto ou programa indigesto. Come-se bem com temas feitos para a
sobremesa. Nada de trabalho, nada de RJ-TVices e similares desgraças, nada de
DRs e semelhantes intrigas: fale-se de viagens, de sonhos, de ficções, de
belezas e sortes, de acertos e encontros. Fale-se do que se ama ou alegremente
pretende, para que a comida assente macia como nova conquista, e não embolada
no pesadume de sapos que a gente hoje ou ontem engoliu.
Almoço e quetais são cerimônias,
são pausas, são prêmios, são parques de diversão inerentes ao dia – playgrounds
por justiça e direito, nunca partes do expediente ou acréscimos à carga de
aborrecimentos que supostamente devemos embolsar, como se culpados de viver. Comer
não é ritual de compensação, sendo porém mais um de felicidade. Não são
necessárias calorias muitas: é urgente que se amem as necessárias. É preciso
degustar em vez de livrar-se, gozar além de nutrir-se, fazer sorrir também a
víscera que nos bombeia. É preciso abraçar a comida sem resmungá-la. É preciso
oferecer a comida e comungá-la. E, oferecendo, é preciso contagiar aquele que
prova novidades com o apetite de quem nem a jiló admite preconceitos. É preciso
não sujar-se, mas lambuzar-se por dentro naquela alegria franca de respeitar as
oportunidades. Colocar os dentes para abordar o galeto com elegância.
Demorar-se nas preliminares do recheio. Fazer bolinhas na fofura do panetone.
Comer também com mão discreta, com os toques imprescindíveis.
E viver como quem sabe que daqui a pouco tem sobremesa.
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