quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Estranho dicionário amoroso


Agora vejam só alguns novos termos do "dicionário tinderês-português", como maravilhosamente escreveu a jornalista Eva Abril em sua matéria no El País – aliás, vejam a maquiavelice embutida nas PRÁTICAS adotadas em paqueras virtuais e nomeadas por esses termos: zumping (pé-na-bundar alguém por videochamada), whelming (fingir-se amorosamente requisitadííííssimo, para valorizar o passe), ghosting (fazer o Gasparzinho e simplesmente desaparecer da relação, sem explicações, sem respostas), zombieing (voltar feito um walking dead, também sem explicações, depois de um falecimento digital), benching (deixar o pretendente no banco de reservas), orbiting (ghostear em parte, sem dar satisfações, mas também continuar curtindo posts e passeando na área), snooping (meter o louco do FBI e escarafunchar tudo a respeito da criatura), kittenfishing (mostrar-se muito diferente do que se é para fisgar o parceiro), fleabagging (sair com pessoas que não nos agradam nem nos fazem bem), pocketing (esconder dos demais o indivíduo com quem teoricamente se tem algum relacionamento) etc. Sim, tem mais, tem mais – e nesse mais eu vou me ater à ação que especialmente me impressionou, pela carga corrosiva e traiçoeira: o chamado negging.

É assim. PARECE que se está dirigindo um elogio ao par, porém a base é, na realidade, a de um insulto: "Você está tão bem para a sua idade!"; "Se você participasse daqueles programas de TV, iriam te transformar numa princesa"; "Esse seu gaguejar é tão fofo. Não chegou a te atrapalhar na escola?"; "Acho meio estranha essa moda das mulheres com cabelo grisalho, mas até que ficou legal em você" – sabe como? Nem mais, nem menos uma estratégia BAIXÍSSIMA de manipulação, conforme observa a autora da matéria citada: "O objetivo é que a vítima procure transformar sinais ambíguos em apreciações inequívocas, de modo que procurará, conscientemente ou não, a aprovação do outro, que terá o controle graças a esta sutil forma de abuso". Pois é; eis uma sementinha de relacionamento abusivo, mores. Por mais que a psicóloga consultada na reportagem faça ressalvas ao emprego do termo "vítima" para adultos autônomos e bem informados que sofram negging (e eu obviamente não possa nem pretenda desdizer a profissional), creio ser válido apontar que nem todos os adultos em questão hão de ser autônomos e bem informados; muitos sequer serão adultos. E essa prática horrenda sequer se restringirá ao Tinder e outras plataformas digitais. Hoje, mais espertos para as tramas que os controladores parasitas tecem com séculos de eficácia comprovada, nem por isso deixamos de escorregar, a qualquer distração, no óleo que continuam jogando. Abusadores em potencial têm olho cliniquérrimo para inseguranças e fraquezas.

Podem ver que é batata: montões de casos entre os que nos chegam pela TV começam com alguém carente de algo que vai muito além de uma companhia – carente de uma validação. Adolescentes, jovens, até pessoas de meia-idade cuja autoestima está de algum modo esburacada; que ouvem a cantada oblíqua e tendem a pensar "Quem esse aí acha que é? Hum, vamos ver se não consigo que goste de mim"; ou que demonstram estar encantados com o fato de uma criatura se predispor a lhes dar atenção entre outras tantas opções maravilhosas, e acolhem com gratidão (faiscante, embora não percebam) as primeiras "declarações" que são, na realidade, pequenas arapucas: a migalhinha de elogio é a isca, a vontade (sugadora) do outro é a gaiola que cai em volta. Aparentemente engrandecida por um lado, a vítima – sei que não é a expressão ideal, mas usemos em falta de melhor termo – se habitua a achar que "não custa" ceder por outro: se ele tem interesse e diz que sou bonita assim, mas ficaria ainda mais perfeita assado, por que não mudar o cabelo? a saia? os seios? o sotaque? a risada? os óculos? os hábitos? Por que não cozinhar com outro tempero? Por que não passar mais tempo em casa? Por que não me afastar daqueles primos que realmente me olham estranho? daquelas amigas fofoqueiras? daquela parte invejosa da família?... Sim, aqui em nosso confortável "de fora" parece e é absurdo; porém a escalada psicológica é tão insidiosamente construída, com tão convincente falsificação de amor vivida por dentro (sobretudo se o sujeito passivo do abuso não tem com o que compará-la), que o efeito acaba semelhante ao da famosa experiência do sapo que se permite cozinhar vivo, por não notar que a água morninha vai se aquecendo em progressão lenta e mortal. 

Queridões e principalmente queridonas: olho aberto, coração escaldado e atenção no volante amoroso. Se o impacto das palavras dói, arranha e tira pedaço, mude-se a rota, que isso aí é um paredão muito do sem-vergonhamente pintado – não é caminho. Caminhos têm espírito de pássaro e alma de ar fresco na cara; não se parecem nem um bocadinho com os cômodos que vão diminuindo, se estreitando e esmagando os ossos nos filmes de ação.

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