segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Observar baleias


Me senti representadíssima por um post lido no Face, mas colhido no Twitter – do perfil @yuribt: 

"Sempre que tô lendo textos acadêmicos, lembro do meu professor que falou que ler é como observar baleias.

Vai lendo, passando as páginas, sem se preocupar em entender tudo.

De repente aparece uma baleia. Vc entende, anota, aproveita.

E fica mais algumas horas olhando o mar."

Sim: toda uma vida de incompreensões universitárias desvendadinha sob meus olhos, desatada – não podia deixar de ser – pela metáfora (pela comparação, para ser precisa; mas metáfora soa mais bonito e mais amplo, não soa?). No texto anterior eu comentei rápida mas exatinhamente isto, que nunca me dei bem com a linguagem acadêmica, estruturices teóricas e semelhantes; nunca me bateu certo o palavrório com que normalmente se embrulham os conceitos. Ficava olhando as obrigações de leitura da faculdade feito um burro olhando para um palácio, para usar a expressão de minha mãe: por que gabirobas era necessário que elucubrações filosóficas, sociológicas, artísticas fossem estendidas num caos de orações sem sujeito (sujeito havia, mas só Deus sabe em que ponta da frase estava), num mar de concordâncias insondáveis, numa sintaxe ida e vinda que parecia um rali de Mad Max na Estrada da Fúria? Por coincidência ou não – certamente não –, os teóricos mais tranquilildos de ler eram justamente os que também praticavam literatura, e cuja escrita, portanto, estava contaminada de conotação, estética e leveza. Os demais aparentemente tinham gozo de dominatrix vibrando o idioma que nem chicote; e eu lá, sem a menor vocação para qualquer modalidade de masoquismo, empacada em trechos de suposto português que soavam direitinho como língua meroítica arcaica, da qual aliás nunca ouvi nenhuma sílaba.

O que fazia o Mar Vermelho se abrir eram as explicações dos professores; uma vez traduzidas as ideias para o brasileiro falado, luzinha e calor ardiam no peito e eu conseguia encapsular o conteúdo em bolinhas de metáfora, absorvendo-o agora plenamente. Mas e quando não há tempo ou contexto para explicações dos professores? Aplique-se o que (doravante e por todos os séculos) chamarei de lei da baleia, que além de perfeita no teor é adequadíssima na forma, com essa leitura duas vezes ressaltada. Pela lei da baleia, mesmo sem um facilitador disponível o desvendamento pode acontecer, talvez insuficientemente para o gosto do freguês, mas bastantemente para uma compreensão global e um crescimento significativo. Desde que se esteja lendo a língua nativa ou outra em que já se tenha certa proficiência, não é POSSÍVEL que em algum momento o raio de uma baleia não suba à superfície do texto para ter respiradouro, ou que a pitomba de um termo, de uma expressão autoiluminável, não dê um salto no meio daquela estagnação azul. Vai ocorrer necessariamente, e então o navegador que teve sangue-frio para acompanhar as ondas – sem se desgrenhar de desespero nem ceder ao transe do marasmo – vai flagrar sua Moby Dick conceitual e se dar por satisfeitíssimo com o troféu do dia. 

É suficiente? Se o clarão principal relampeou aos olhos do leitor e foi por eles guardado: suficiente. Para o momento, suficiente. Que o leitor é isso; assim como o pescador (ou qualquer outro ofício), não fica pronto de prima, não tem em toda pesca a mesma sorte; desenvolve a técnica a cada lançar de remo, de rede. Com tempo e manejo, fica safo para a percepção do que antes – quando só tinha olhos de identificar baleia – passava por ondulaçãozinha ilegível, e na madureza do olhar vira pista, vira indício, vira finalmente palavra. O pescador experiente torna-se experiente depois de muito ressignificar o que era dito pelo mar, mas não era ouvido, apenas guardado no que a amiga e historiadora Camila Rodrigues lindamente chamou de "repertório silencioso": nosso depósito de referências que permanecem maturando até estarem prontas para consumo. Não há encontro ou embate com o texto que na verdade não produza efeito, ainda que a posteriori; ainda que nossa lembrança acredite só ter registrado o que era mais óbvio e gigante. Mesmo que pensássemos não estar vendo, sentíamos o embalo marinho do texto, seu cheiro, seu sal, seu ritmo, a impressão física e emocional de seu contato – e isso também é repertório e memória, também é conhecimento se formando, também é inteligência nova que se impregna quase à revelia.

Há, sim, uma dose de resiliência dolorosa em se sentir à deriva no verbaval, jogado lá e cá dentro dum barquinho principiante, sem motor, sem potência, até sem o impulso voraz que pulsa no náufrago. Vale a pena? opa; mesmo na peleja não pequena: "Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ Mas nele é que espelhou o céu". Quisera ter-me esmerado muito mais na arte de sentar à beira-texto ou de ser navegada – que hoje sei melhor, bem melhor, que quem se dedica a ter ouvido capaz de ouvir e entender baleias não fica nunquinha a ver navios.

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