domingo, 15 de novembro de 2020

Um bufão no salão


Preciso nem comentar o quanto fiquei horrorizada e indignada com a capa da IstoÉ desta semana, imperdoavelmente desrespeitosa – desrespeitosa com o Coringa, é evidente. Por motivos óbvios não vou reproduzir aqui a imagem grotesca, mas todos devem ter visto: a cabeça do criaturo-em-chefe pintada com a já icônica maquiagem e colada sobre a já icônica posição de dança do Palhaço; ao lado, numa tentativa de justificar a comparação esdrúxula, os adjetivos "inconsequente, irresponsável e insano". Só sei que me deu um tangolomango de entojo por dentro, uma embrulhada de dor que vim aqui despejar na cabeça de vocês antes que eu saia por aí apavorando Gotham.

"Âin, por que isso tudo, é só um personagem" – sim: é um personagem que eu amo profundamente (ao menos em sua última encarnação, e ao menos em sua versão pré-dissociativa) sendo relacionado e confundido com o representante de tudo quanto eu mais odeio. TU-DO. Até faço, boazinhamente, o esforço de compreender o raciocínio dos editores a partir da escolha das palavras; não há como negar que ambos os indivíduos sejam inconsequentes, irresponsáveis e insanos, de fato; porém linká-los por esse umbigo de abordagem só demonstra a mais superficial das visões – como se alguém, do filme inteiro, tivesse visto somente a cena da dancinha louca na escada, e ignorasse solenemente cada tijolinho psicológico, cada recorte social, cada circunstância, cada porquê. Não muito diferente, em última análise, de se fazer uma capa equiparando o Batman à Vandinha porque os dois se vestem de preto, ou o Cascão à Ariel porque os dois decidiram ficar longe da água, ou o Ursinho Pooh à Moana porque os dois têm um amigo porquinho. Nada mais fácil do que prosseguir sem critério na farra dos emparelhamentos doidos, considerando que qualquer um de nós está, relativamente a qualquer coisa, intermediado por algum grauzito único de separação.

Bolsonaro (com o perdão da má palavra) e Coringa não apenas não são semelhantes: são opostos. Arthur Fleck nunca teve nenhuma blindagem, nenhuma proteção, nenhum privilégio; nunca teve sequer família propriamente dita, nunca foi marido e provavelmente nunca será pai de alguém, apesar de mostrar clara preocupação com a alegria e o bem-estar de crianças e SABER que é errado praticar violência ou portar arma em presença delas (aliás, Arthur é o primeiro a reconhecer que NÃO tem condições de portar arma). É uma criatura pobre, paupérrima, presumivelmente no limite da desnutrição, que não conta com ajuda alguma de empresário rico – e nem ao apoio mais básico do Estado tem acesso por muito tempo. Tenta sinceramente fazer bem seu trabalho. Não apresenta a mínima tendência para adotar comportamentos machistas, racistas, preconceituosos em geral. E (muito importantemente) não parece ter real intenção de rir dos outros, a não ser que estejam fabricando piada; mais: fica constrangido de maneira genuína ao gargalhar em momento impróprio, por mais que o faça à sua revelia, sem prazer e sob toneladas de aflição.

Caso a digníssima IstoÉ ache por aí um presidente assim desprivilegiado, desfamiliado, desamparado pelas esferas pública e privada, empenhado no serviço mesmo entre uma surra e outra, isento de preconceitos contra minorias, envergonhado de suas reações inadequadas, consciente de que armas podem não ser uma boa ideia, vá lá; paro de espernear contra a analogia coringuesca. Mas desconfio de que não rola, jornalistas queridos. E, como não rola paralelo desse lado do picadeiro, deixo aqui minha modesta sugestão para que abracem o super hype Pennywise como substituto. Não estão à procura de um clown que atraia espíritos incautos usando como álibi um objetinho vermelho a ser estourado, e que quase trinta anos depois a gente acha que acabou, mas continua e se perpetua – vampirizando, vampirizando? então. De nada, viu, pessoal da IstoÉ? Em troca, solicito única e docemente que parem de palhaçada.

2 comentários:

Juliana disse...

Também estou farta dessas falsas equivalências criadas pela mídia em geral. São recortes rasos, muito superficiais, mas que atingem em cheio os leitores incautos. Adorei o texto, Fernandinha. Como sempre, você arrasa!

Beijão!

P.S.: amo a forma como você usa os advérbios, precisava dizer isso.

Fernanda Duarte disse...

SUPERobrigadíssima pela leitura e pelo carinho, Ju! De fato, adoro advérbios muitomente, hehehe! 😅😅 Beijãozãozão! 😘😘😘