Às vezes um cheiro de pomada me traz estranhas memórias de tempos específicos, que no entanto não consigo especificar. Numa idade qualquer estive em uso desse remédio ou de um parecido – e só um pedacinho à toa do velho aroma evoca adolescências vagas, nebulosas. Fui sempre feliz (ou nunca fui infeliz), mas voltar sei lá para onde não é agradável, é confuso, arbitrário, inquieto. Só quero madeleines literais; sua metáfora me constrange a um terror íntimo.
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O sono, filó nos olhos, nos deixa ternos para tudo.
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E quando a gente está lendo dessas histórias em dois, três volumes, com trilhardares de peripécias, e fica semiórfão no afastar-se da fase e do ambiente em que mais queríamos o protagonista? O infeliz descarrilhado não volta enquanto não atravessamos com ele mil burocracias escritas, enquanto não o passamos para a outra margem de mil tédios e contrariedades; e enfim nossa orfandade aumenta com o fim da saga. Longos e frequentes sejam os enredos que saibam onde demorar-se.
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Há um profundo abandono, aliás, em estar onde quer que se esteja sem o livro que temos lido.
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Há também profundo abandono e profunda desolação no bocejar durante qualquer coisa, mesmo nos restinhos de noite, mesmo nos despojos da festa, do trabalho, do encontro; bocejar é um arriar sincero da vontade, um despregar-se do momento. Bocejo tem seu quê de barco partindo; contém miniaturas de adeus e renúncia.
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Queria, como queria! que minhas curiosidades eternas entrassem em concórdia com a sensatez da biologia e deixassem de ver, no sono, um desperdício!
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Nuvens só são aceitáveis à noite quando esparsas, servindo de algodãozinho às joias que piscam num azul quase purificado e mais limpo. Mas esses vapores que cobrem a noite dum cinza rosado! Tem que haver regulamentação dessas nuvens lesa-poéticas, com o mínimo de urgência.
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Tapo os ouvidos sem querer, ainda que no silêncio de madrugada adentro: musiquinhas interiores, involuntárias, obcecam a paciência feito gremlins.
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A melancolia eu somente considero viável com propósitos artísticos. Mantida em sua pequena gaiola de romantismo e inofensiva doçura, vá; absorvida pelos poros, entretanto, deixa tudo com aquela essência de poeira ou fumaça que se tem num meio-dia de cidade grande, e que chama à irritação e à desistência. Odeio agudamente a melancolia lívida que cheira a cigarro; tolero-a em rosa, sépia, lilás, melancolia-menina com floreira na janela. É improdutivo demais não ter flores reais nem metafóricas.
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A melancolia que presta para alguma coisa não se indiferentiza. Ri do nariz vermelho de frio. E veste agasalho.
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