Lixeiros – os Senhores Incríveis de laranja, homenageados no 21 de outubro – têm das profissões que mais admiro, ou pelas quais mais guardo afeto. Só no dizer isso já sei: aceitarão sem questionices a parte do afeto; torcerão discretamente o nariz no pedaço da admiração. Mas sustento. Não creio em só admirar funções que teoricamente produzem, que botam no mundo o que aí nunca estivera, seja ou não seja produto material: atores, professores, publicitários, engenheiros. Acredito, tão respeitosamente quanto, em manter suave veneração aos que eliminam resíduos de dores e abundâncias, aos que aram ruas para cultivo de outro dia útil, aos que (como a babá traz apresentável aos pais o pequeno lambão) devolvem o planeta em condições de higiene antes do beijito de boa-noite. Mães não são fãs encantadas de filho e genro médico? Pois lixeiros são isso, médicos de cidade; é fato que com muito menos estudo e ciência, e menos ação individual, mas mais aplicação coletiva. Lixeiros saram as ressacas de festa na praia, limpam colesteróis de bueiro, debelam criadouros de aedes safadões, desintoxicam praças de restos temerários de comida. Entregam saúde depois do caos, desviam males antes do cúmulo. Medicamente.
Sou compelida, além do mais, a olhar com espantada ternura os capazes de realizações que, para mim, moram no impossível. Nós que muitíssimo a custo, e com exagerado nojinho, matamos um inseto ou espiamos de relance uma lixeira de banheiro; nós a quem o cheiro de qualquer casca de laranja ou a presença de qualquer grupinho de cabelo no chão causa promessas de vômito; nós para cujo hor-ror! basta o pensamento hipotético de um corte no vidro ou espetadela de agulha – imagine-se este acovardado nós intrometendo-se inteiro, cabeça-corpo-membros, entre ninhos de asas e antenas proliferantes, cascas eternamente azedantes, papéis das mais várias formas empregados, florestas de esparadrapo sujo, garrafas, arames, seringas. Fosse depender de minha coragem, o universo afundava em sobras. Aplaudo, sim – de coração tão completo como aplaudisse a atuação fenomenal dum pianista ou a descoberta revolucionária contra o câncer –, a bravura desses adoráveis heróis sem capa; dançarinos no abismo do acaso, dependentes da atenção de cada segundo, grandes o bastante para descerem ao Hades de nossos desperdícios e voltarem ainda não nos desprezando excessivamente. Sobretudo, aplaudo a valentia suprema de se aceitarem transparentes, quando mesmo no abóbora alucinante do uniforme se tornam parte do cenário: sempre ali estiveram, sempre ali estarão, discretos e perenes, supostos indiferentes à nossa indiferença em tempos fanáticos por aparecer. Essenciais invisíveis aos olhos.
Lixeiros, garis: justiceiros desmascarados que, plena luz do dia, vestem nossas prioridades distraídas como identidade secreta.
3 comentários:
Fernanda, lindo o texto. Como sempre. Também admiro muito o trabalho daqueles que limpam as nossas sujeiras, não só garis e lixeiros, como as arrumadeiras, lavadeiras, e todo e qualquer profissional que dá asseamento àquilo que não temos coragem de fazer.
Beijão.
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