Chegam por aí as natalices, e por causa delas me recordo de uma reportagem que uma vez trabalhei em sala de aula, sobre moradores do lixão. Não, não é notícia da era Carminha; faz tempo. Era texto já velhusco quando o descobri e utilizei, anos atrás. Lembro que o sonho de um dos catadores (idosos) entrevistados na matéria sempre fora o de provar panetone. O pobre revirava caixas bauduccas que vinham em caminhões de lixo, na esperança de alguém ter deixado um restim, mas qual; tudo raspadíssimo da silva. Lembro também que a reportagem me moeu o coração com ralador de queijo, e mói ainda (embora não falte a esperança de algum leitor da época haver presenteado o catador com uma tonelada de embalagens preenchidas). Doeu-me a simplicidade do pedido, tão à mão e tão irrealizável, tão encontrável em qualquer esquina – ainda mais agora que há panetoninhos-bebês para verbas menores – e tão inacessível. Provar panetone é um “nunca” da nudez extrema. Da mais abusada miséria.
O nunca de Tião (posso quase jurar que o nome dele era Tião) me dá quilos de vergonha quando penso em meus nuncas classe-médios, afastados de qualquer fome, irrealizados sem culpa de caminhões que não trouxeram o pedaço certo: nunca fui à Europa, nunca passeei de helicóptero e balão, nunca aprendi a costurar, nunca estudei francês, nunca fiz cruzeiro, nunca me inscrevi na dança de salão, nunca tive cartão de crédito, nunca estive com Marido numa festa à fantasia. Importa? nuns casos, algum tanto; em outros, pouquíssimo. Mesmo se importasse muitão, não havia de ser calamitoso como certos nuncas alheios que me trituram o coração no liquidificador. Tem gente, minha nossa – gente talvez do quarteirão, do prédio talvez – que nunca devorou um livro desde o cheiro até o personagem, nunca ultrapassou o analfabetismo emocional de não se entregar à história, de não curtir um pequenino luto quando o enredo se fecha, definitivo e saudoso. Tem gente que cruza com a gente na rua e nunca suspeitou do que fosse um Natal harmonizado em família. Gente que, meu Deus, nunca recebeu indício do que fosse família. Gente que nunca teve a quem apelidar de “mãe” ou a quem, nas horas maiores, enfeitar com o título. Gente que nunca fez um trajeto que terminasse em “obrigado”. Gente que nunca provocou um “obrigado”. Gente que nunca concebeu entranhadamente o sentido de um “te amo”. Gente que nunca desprendeu gargalhada sem que houvesse a ferida de outro envolvida. Gente que nunca respirou à larga em viagem. Gente que nunca cantarolou por dentro enquanto esperava o ônibus. Gente que nunca (se) confessou estar exausta. Gente que nunca conheceu quem lhe ouvisse os defeitos mais retumbantes sem perigo de chantagem. Gente que nunca conheceu quem lhe percebesse a mudança, a enxaqueca, o sumiço. Gente que nunca mereceu confidência. Que nunca tocou noutro rosto. Que nunca roçou noutro cabelo. Que nunca suspirou alívios ao voltar pra casa. Que nunca se flagrou em casa. O pior, fortemente o pior: gente que nunca desejou. Nada. Nunca. Alma noves fora zero.
Me assusta demais da conta, me espanta cem vezes mais que o querer panetone e não ter panetone, essa incapacidade de querer. Esse jeito de ser e não ser pessoa, esse vácuo fundamental. Gente tão despida de gentice – espoliada de si, quem sabe, pelo máximo da dor – a ponto de nunca ou nunca mais esperar o príncipe, as férias, o níver, o melhor emprego, a próxima edição da revista, o último capítulo da novela, o filho que anda distante, dez quilos a menos, dez amigos a mais, o véu, a grinalda, o beija-flor, o carteiro, a paz mundial. Gente que não tem curiosidade de caviar ou carne de rã, não anota a estreia de um filme, não planeja terminar a reforma ou o ensino médio, não cobiça um salário ou sapato, não folheia um romance ou roteiro, não imagina um castelo, não projeta um desfile, não cria um enredo, não se arruma para a visita, não faz curso, não faz concurso, não cogita trabalho voluntário. Gente que assinou renúncia mui antes da hora; que, se pudesse, puxava a cordinha e mandava parar o mundo para bocejantemente descer.
Tenho pânico de tropeçar para dentro desses espíritos que viraram cotoco. Que jamais brotaram além do cotoco. Tenho medo ancestral de pegar contágio dos que desistiram do jogo e vêm tocando a bola só para cumprir o tempo regulamentar.
Tenho medo de almas deste mundo que não criam memória. Que, de tão exclusivamente sólidas, no segundo em que morrem desmancham no ar.
Um comentário:
Excelente, Fernanda.
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