quarta-feira, 22 de julho de 2020

Afinadores de silêncios

Pôr Do Sol Pai Filho - Foto gratuita no Pixabay

É tão lindo quando, em "Eu, Mwanito, o afinador de silêncios", Mia Couto fala sobre essa suave vocação de aprimorar o sossego: "A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.

Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios."

Benditos sejam os afinadores de silêncios! Prestam o serviço essencial de desconstranger a ausência de fala. Nas imediações desses profissionais, se espalha a calma da desobrigação do contato. Porque tudo hoje é a compulsão do contato, e mesmo ao não ser realizado ele pesa sobre o ambiente, achata-o; estão aí os elevadores nos quais entramos com desconhecidos – ou pior: semiconhecidos – que não me deixam mentir. Em outros países não deve ser assim (o tempo em que estive neles foi insuficiente para maiores pesquisas), mas no Brasil o estar calado é quase grosseria, é perto de desacato social; e portanto, à força de precisarmos ter na língua o dito simpático, maiores são nossos alívios se o recinto não contém presenças antipáticas. Quais presenças antipáticas? Todas, quando só o que queremos é não sair de nossas faxinas ou brincadeiras internas para fazer sala sonora. 

Como é gentil essa gente que não só não nos aborda com barulhos, mas providencia mais: arranja para que o silêncio do lugar não desafine, emana qualquer coisa de sereno e confortável que nos embrulha na confiança de que está tudo bem assim mesmo, assim quieto, assim calado; está como deveria estar, dizem essas abençoadas auras de algodão. Sim, são auras de algodão, é a única explicação poeticamente plausível. São auras de algodão, são energias de travesseiro, naturalmente limpadoras do ambiente pela sua total ausência de demandas, ou pela percepção finíssima e quase sobrenatural de que não é o momento de fazê-las. São almas que nos dão não aquele sono de tédio, e sim o relaxamento que se tem na plena confiança de que não há tensões voando feito baratas nos arredores. Almas que operam em frequência macia, que geram às vezes um arrepiozinho na pele e nos ouvidos com sua delicadeza de pena, que têm o dom de compartilhar sua própria paz num abraço imaginário, virtual, sem sequer estarem disso conscientes. Como eu as amo! almas afinadoras de silêncios, almas conhecidas ou incidentais que são roteadoras de tranquilidade, almas que sem querer filtram o ruído do mundo, que matam as apreensões do ar com sua doçura intrínseca, com seu self de elfo que pisa levíssimo, de fada que nem pousa.

É isto talvez o que fabrica um bom afinador de silêncios: não pousa, não sai nunca do voo discreto e solitário – ou então vai direto para o ninho, sem esbarrar em ninguém, sem colocar nem um grama a mais sobre o chão. Coisa de gentes que, além das muito amadas (porque são muito amadas), são das poucas que conseguem ser melhores que sua ausência.

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