sábado, 11 de julho de 2020

Atados

Corda Entrelaçados Amarrado - Foto gratuita no Pixabay

"Livre não sou, que nem a própria vida/ Mo consente./ Mas minha aguerrida/ Teimosia/ É quebrar dia a dia/ Um grilhão da corrente" – diz Miguel Torga na primeira estrofe de seu poema "Conquista". Endosso e dou fé: totalmente livres não somos nem seremos neste planeta, que já chegou para nós tecido, costurado, aramado e cercado como herança. Para alguns (por época, geografia, gênero, cor, origem) veio a asfixia de quase liberdade nenhuma, para outros sobraram bônus e benefícios; mas mesmo estes últimos – tenham ou não crescido com o mínimo de consciência nas entranhas – nunca, absolutamente nunca estarão livres da responsabilidade pelo que falta aos primeiros. Pode calhar de vivermos privilegiados sobre a terra; livres, não. Nossas lutas e deveres têm nosso mesmo aniversário, nascem conosco, atrelam-se a nós independentemente de os ignorarmos, cobram seus impostos. Temos a escolha de fazer ou não o que há a ser feito, porém nenhuma escolha a respeito de ter ou não algo a fazer.

Sendo humanos, estamos atados. A alguns se amarram os nós apertadíssimos da sobrevida, e a batalha é dolorosamente diária, com a morte no papel de adversário e todo um sistema de carcereiro: são as opções estreitíssimas de emprego e moradia, é o horário de trabalho duríssimo que deixa os filhos descobertos, é o campo de seleção pouquíssimo em termos de hospitais e escolas próximas, às vezes são as minúsculas margens para fora de abusos físicos, de perseguições étnicas e culturais, de pensamentos tolhidos e vozes amordaçadas. Existem liberdades microscópicas, sufocadas, desenjaneladas, com tão mínimo espaço de manobra que seu portador mal consegue romper um ou dois grilhões por década, quanto mais diariamente. As pessoas de meu entorno não estamos nesse caso – e ainda assim nossa liberdade se encontra absolutamente entrelaçada à dos contemporâneos que precisam arrebentar essas celas. Enquanto houver Bastilhas sociais, todos nós a habitamos.

Todos nós habitamos um astro rotativo e translativo que despreza solenemente a lógica dos esquemas econômicos, e que só com muita parcimônia revela os seus próprios, abrindo-se devagar aos que investigam sua natureza. E essa natureza opera em equilíbrio, em concerto; se há predadores que a ferem, há também consequências óbvias da ferida, que infelizmente não se detêm aos predadores – porque participamos da mesma natureza, em última instância, e também estamos fadados a operar em concerto. O fato é que, se diminuímos e esmagamos os recursos humanos, todos perdem em riqueza de caminhos, de alternativas: na ânsia estúpida de acumular alguns privilégios para agora (e só agora), meia dúzia de antas passa como um trator sobre milhões de cérebros que as salvariam. Ao tolhermos liberdades, ao limitarmos horizontes, ao reduzirmos inteligências humanas a forças exploradas, ao dinamitarmos psiquismos e futuros, ao fecharmos a estrada de tantos RGs em nome de tão poucos CNPJs, automaticamente podemos estar: assassinando no berço os descobridores da vacina; impedindo o crescimento e o estudo dos curadores do câncer; empurrando para o crime uma vocação que nasceu para ser bailarina, física, atriz, médica, professora; desgastando nas drogas a mente de um Nobel, a resistência de um bombeiro, o corpo de um maratonista, o coração de um humanitário. Ao estrangular chances e oportunidades, chafurdamos no desperdício – e nossa mesma liberdade de "privilegiados" fica estrangulada, uma vez que somente o pleno desenvolvimento de todas as capacidades disponíveis pode garanti-la.

Nada justifica que nossa aguerrida teimosia não seja sair compulsivamente quebrando grilhões alheios, tão inimigos de nós como os nossos. Nada justifica, mas nossa história explica: há um excesso de péssimos voadores que só consideram possível ter espaço aéreo abatendo o voo dos demais ou engaiolando-os no chão.

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