quinta-feira, 9 de julho de 2020

Embriaguemo-nos

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"É necessário estar sempre embriagado", disse Baudelaire num de seus poemas em prosa. "Para não se sentir o horrível fardo do Tempo que quebranta os vossos ombros e vos curva em direção à terra, deveis vos embriagar sem trégua. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como quiserdes. Mas embriagai-vos."

Denotativamente, discordo horrores do poeta. A coisa estética e sensorial do álcool me repele; acho que as bebidas fedem (notadamente a cerveja), e que as pessoas delas possuídas as bafejam e suam de modo bem desagradavelzinho. Não falo de bebericadas, falo de excessos – aqueles chatos, doentios, em que os olhos do bebedor partem para o distante, ficam vagos e embaçados, e sua voz vira uma pasta, e os movimentos se embrulham inconvenientes. "Mas nem todo..." Sim, nem todo; sempre nem todo. Tem gente que bebe com arte e prudência, forra o estômago, saca sabiamente os limites e nunca deixa a bebida ser o alfa. Beleza. Quando não, porém – seja por descontrole recreativo, seja por vício –, o conjunto é imensamente triste e nada sedutor. Poucos (e gastronomicamente bem acompanhados) goles de vinho eu supertopo; mas a embriaguez etílica, com seus exageros e vexames, suas náuseas e ressacas, eu dispenso em contrato e com firma reconhecida. Jamais me foi atraente pensar em aliar diversão com embotamento da consciência, ao contrário: faço questão dos pés, mãos, visões, audições, paladares, olfatos fincadíssimos no real e abertíssimos à memória, sem a qual o fruir se perde num tempo que nem houve por dentro, embora tenha de arcar com as consequências de fora. 

Conotativamente, no entanto, posso concordar com o velho Baud: algum escape é necessário deste presente esquisito que nos curva, que pesa no coração e ombros sem muitas cerimônias. Embriaguemo-nos, pois, do que nos arrebata e não nos nubla; embriaguemo-nos de cinema, mergulhando tão fundo e tão longe que aqueles personagens nos pareçam estar nos braços, e toda uma vida que nunca tivemos (e outros terão talvez) se mostre possível, acolhível, compreensível. Embriaguemo-nos de música, dançando magicamente a faxina obrigatória. Embriaguemo-nos de literatura, sugando os vapores de Guimarães Rosa ou Cecília Meireles ou Manoel de Barros ou Machado ou Drummond ou Clarice, inebriantes de cores, ritmos, universos, vocabulários que dão barato n'alma e nos ouvidos. Embriaguemo-nos de beleza, passeando em museus virtuais, em galerias digitais, em paisagens street viewed pelas lentes do Google. Embriaguemo-nos de ideias, arriscando saltos e braçadas na filosofia, na sociologia, na psicologia, na história. Embriaguemo-nos de virtude (como disse o poeta), engajando nossas paixões em causas ricas de afeto – sustentar, proteger, alimentar, apoiar de maneiras várias os mais vulneráveis, os primeiros esmagados do sistema. Embriaguemo-nos evidentemente de amor, tornemo-nos ébrios dele em todas as formas, apaixonando-nos loucamente pelos companheiros de décadas, redescobrindo com encanto a fofura e a sabedoria dos filhos, permitindo-nos a surpresa dos novos amigos. Embriaguemo-nos muito e sempre, não por desistência e fraqueza, mas em trilha de força e acréscimo; embriaguemo-nos de tudo que é extremo em vida, por teimosia de vida; embriaguemo-nos do que não nos entorpece, não nos bestifica, mas nos acalenta, encoraja e impulsiona.

Não precisamos de mais fumaça, de mais tropeço, de mais problema, de mais tolice, de mais peso além dos compulsórios. Aliviemos a pedra, o fardo que quebranta os ossos, e vamos atrás do que nos arroje, nos incite. Embriaguemo-nos da catapulta.

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