quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

O fluxo


Tem sido um janeiro chuvoso, muito chuvoso, o que me dá um contentamento estranho; afinal sou carioca, nascida e vivida. Entantomente não sou chegada a praíces (é preciso DEMOLIR esse estereótipo do nativo do Rio que apenas torra à beira-mar), não me abalo nunca de casa para areias que não ficam perto, só me empraio durante viagens; não curto esportes tampouco, não faço trilhas, o que significa que posso morrer de paixão por um céu de azul diamantino e raios de sol filtrados pelas árvores – mas não preciso deles para nenhuma contenteza. Isso já me dá boa dimensão de meu privilégio classe-médio, que observa o tempo chuvoso com interesse e não com apreensão, como aliado de rotinas indoors e não como ameaça; não pensem que não sei, sei bastante e a consciência me endolora. SE o excesso de chuvas, portanto, não representasse para ninguéns a desolação que representa, eu as abraçaria de coração leve, algo lamentavelmente inviável; resta então fragmentar as impressões entre a nudez forte da verdade e as meras individualices pesadas de ressalvas.

Nessas individualices meríssimas, chuva é um passaporte para o modo oculto, o modo avião; chuva desculpa os atrasos e cancelamentos, adia compromissos, dá o selo de garantia nas justificativas. Com chuva, não havendo urgência, ninguém vem e ninguém vai; ganha-se um por enquanto bom e longo, preferencialmente recheado de leituras que alma alguma condenaria – quem é que acha desacerto no ato de ler durante a chuva? Horas plúvias configuram por natureza (com trocadilho) períodos de habeas corpus social, de consentido afastamento, de pausa total no caso de manifestações extremas: derramamentos de relâmpagos e trovões são, afinal, o álibi forçado para desligarmos TV e máquina de lavar, ficarmos longe do computador e de qualquer outro apetrecho de tomada, quietinhos, analógicos. Em faltando luz, aí mesmo que a rotina se lasca e toda tentativa de normalidade se arrebenta, sequestrados que estamos de nós – quase que de voz.

Significa que eu torço para faltar luz? Credo, não; tenho comida no freezer, quero ver a novela, esquentar um lanche. Se falta e nada chega ao ponto de apodrecimento, porém, não me irrito gigantemente, sigo o fluxo, algo encantada porque a chuva decidiu. É isso: tempestades, quanto mais geniosas, mais tendem a ser um salvo-conduto – uma potência centralizadora que reorganiza a seu bel-prazer a agenda, adentra o cotidiano com o dedinho em pé dizendo não, não vai sair não, sossega e senta lá, Cláudia. A gente obedece, mesmo não se chamando Cláudia (a menina lá da Xuxa também não se chamava, e quem liga?); se os índices pluviométricos mandam dormir a gente dorme, se mandam ficar em silêncio a gente fica, se mandam nem pensar em pendurar roupa lá fora a gente não pendura, se mandam esperar – saca esperar? coisa que faziam nossos ancestrais? – a gente espera, impotentemente espera, sem controle remoto cabível. Na decorrência da espera aspira-se aquele perfume geosmineiro de terra úmida, admira-se com recolhido respeito a beleza dos relâmpagos e o próprio furor do despencamento de água, às vezes tão cerrada que chega a se disfarçar de névoa. É bonito, atiça os sentidos quase todos e o melhor é que nos reposiciona como criaturas ínfimas, de ilustre insignificância perante fenômenos que nos arredoram – nós, pulgas de perninhas que estão para o toró como formigas estão para o maremoto dum chuveiro.

Chuva é a natureza que nos bate literalmente à porta e à janela, moremos nós no campo, na praia, na serra, no centro. Chuva, com mais eficácia que qualquer outra efeméride cotidiana, nos limita dentro.

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