segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Ode ao desromantismo


A verdade é que renunciamos sempre, sempre, grande ou minusculamente, esteja a consciência ou não em plena vigília. Se é de uma viagem dos sonhos que se trata, por exemplo, afora o emagrecimento da conta bancária em níveis anoréxicos há a excruciante preparação da bagagem – que só não é excruciante para os que não têm de calcular desde o momento menstrual até a menorzita alteração de saúde possível, para fins de estoque farmacêutico (e isso porque não sou mãe; por essas e semelhantes outras é que não quero). Se a viagem já está de vento em popa, podes crer que ao alumbramento do passeio há de se mixar também a garganta excessivamente seca sob o clima (digamos) europeu, a tentativa dessa garganta de evitar imensas hidratações – para que a busca do banheiro não seja tão eterna quanto Roma –, as onipresentes filas, as discussões de grupo, os desencontros, os calos, as bolhas, o cansaço que não repousa porque caminha o dia inteiro e madruga no seguinte. Estou reclamando? de modo algum, listando apenas; e não sei para vocês, mas a lista desglamourizada e consciente de todas as aborrenúncias me ajuda muitíssimo quando é forçosa a renúncia contrária: se posso viajar, maravilha, que espetáculo, vamos em frente; se não posso (e por enquanto não posso), tudo igualmente bom, é um tempo de descanso de bolhas e malas e sede insaciável. Saber todas as desvantagens me empurra também a ver vantagem em tudo.

Dar aula presencial esgota a voz e os nervos, porém diminui a carga de preparações da versão remota – além do quê, vejam que fabulosidade, o almoço na escola é tão presencial quanto as perrenguices. O calor do Rio nos obriga ao ar-condicionado e nos esgota até a medula, e no entanto eu simplesmente ADORO não ter de abrir a água quente durante o banho. Certo, andar de saia me deixa ainda mais vulnerável à mosquitada que me lancha diariamente, e saia é às vezes indomável, saia voa; mas não é extraordinário passar o ano in-tei-ri-to sem me enfiar no abafamento duma calça comprida? Caminhar de sandália é certamente mais desconfortável do que de tênis – o que não impede de ser notavelmente mais fresco, com o bônus interessantíssimo de não acrescentar meias ao cesto de roupa suja. Estar enfiado no escritório num dia quente e azul não é exatamente o ideal paradisíaco de cidadão nenhum; apesar disso, há grandes chances de se estar aproveitando uma gorda refrigeração do ar sem pagar por ela, e bebericando uma aguinha gelada sem gastar a própria.

Não assistir ao filme no cinema – templo sagrado – é muimente mais caído, desprovido de som profissa, telãozão e cheiro de pipoca; mas em casa não há gente comentadeira e checadora de celular, e há a oportunidade linda de pausar a história se a natureza chamar inelutavelmente. Ter bichinhos é explosão certa de amor e fofura, porém não tê-los é garantia redonda de casa mais limpa, despesas menores e sapatos desroídos (extensivo a filhotes humanos). Não escrever é uma liberdade da qual já sinto falta; escrever é uma liberdade outra, um jeito de passar a mão no idioma de maneira permissiva e quase sensual. Estar na infância é bom com sua ausência de boletos, sua fantasia galopante e seus Natais embrinquedados; ser adulto, no entanto, é fantasticamente insubstituível se existe um mínimo de autonomia e ciência das próprias forças, das próprias asas que batem sem autorização e sem tutela.

Desromantizar é minha romantização assegurada: há paisagem em toda janela.

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