sexta-feira, 4 de março de 2022

Mátria


No ritmo do coração, um dos atuais concorrentes ao Oscar, é sem dúvida uma Sessão da Tarde fofinha, mas (aliás: por isso mesmo) seria um descalabro lhe dar a estatueta principal; trata-se dum azarão simpática e infinitamente previsível, 4.587 vezes inferior ao talvez favorito Ataque dos cães – este sim um filmaçaçaço em roteiro, petulância artística e destrinchamento humano. Claro, o desnível acachapante não significa que faltem ao filme sobre Ruby Rossi (única ouvinte numa família de surdos) umas tantas daquelas cenas de guardar na caixinha estética, como a sequência em que a cineasta nos faz ter a mesma experiência dos pais e irmão de Ruby, ou o trecho amorosíssimo no qual o pai da menina dá um jeito de "ouvi-la" cantando, ou o clímax que nos empurra para a emoção compulsória tanto quanto enternece um personagem casual da própria trama. Para quem é mais ligado no dito que no entoado, porém, uma partezinha específica tende a comover até a medula: o momento ardentemente silencioso em que Ruby, a pedido de seu professor, explica como se sente quando canta – e só consegue fazê-lo por meio da língua de sinais, embora seja usuária proficiente do inglês falado. Nenhuma tradução nos é dada, nem a nós nem ao interlocutor, sendo no entanto impossível não compreender a mensagem de delicadeza, plenitude, amor e desabrochamento que as mãos da protagonista recitam na tela.

Como pessoa de Letras, recebi a seta toda açucarmente fincada no peito: tinha acabado de "ouvir", mais nem menos, uma das mais lindas odes à língua materna, pouco importando se é de fonemas ou de gestos que é composta. Por que Ruby não deu conta de expressar de viva voz ao professor o teor de um de seus amores mais sagrados, se eram justamente os sons esses amores e se não havia nenhum abismo entre seu vocabulário e o dos demais praticantes do idioma? Porque o inglês falado não era a língua materna da jovem, a primeira, a primeiríssima língua, aquela aprendida no berço e usada no universo doméstico quando ainda era o único, quando ainda não havia escola ou vida social que não entre os afetos de origem. Apesar de ouvinte, a protagonista classifica sua fala nos primórdios escolares como "fala de surda" – uma vez que o inglês não gestual acabou chegando a ela já como língua madrasta, um acréscimo de recursos que se lhe incorporou com naturalidade, mas que não nana-nanou suas primeiras manifestações do pensar e sentir. E ah! podemos acabar de ser em qualquer idioma, qualquerzito ou zitos entre o céu e a terra; podemos nos completar e enriquecer com qualquer glossário de empréstimo; entantomente, toda vez que recomeçarmos a ser – toda vez que voltarmos ao telúrico de nós, ao âmago do âmago, ao próprio do próprio – só sentiremos e pensaremos na língua materna, só nos espelharemos nela, como companheira e testemunha inicial de todo o nosso capítulo de inaugurações.

A língua em que nos humanizamos é a caixinha de ferramentas do sistema de afetos; a não ser que um afastamento muito cortante e definitivo asfixie suas memórias, é com os instrumentos dessa bolsa emocional que visceralmente xingamos, que organizadamente nos compreendemos, que setorizadamente nomeamos; é com as serras da caixa que recortamos pedaços de mundo, com seus martelos que imprimimos nossas raivas e apegos, com seus pregos que rotulamos, com seus canivetes que torcemos, esculpimos, abrimos, fechamos, alargamos vias, estreitamos opções. A língua materna, ela apenas, nos fala e fala de nós quando tudo silencia e resta a narração das consciências e inconsciências que hospedamos, o bololô refletido ou impulsivo que nos forma, que nos molda, que nos habita.

Com muitos códigos, dizemos; um só código nos grita.

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