O cara que perdeu há um tempo o
filho de treze anos diz, na entrevista, que ainda tem alguma cerimônia nas
horas de se mostrar feliz. Megacompreensível: é a culpa entranhada das grandes
dores. A tonelada que somos obrigados a carregar socialmente, feito sinetinha
de leproso, no caso de nos ter assinalado a tragédia. Pega meio malzão – ainda
que o luto fechado, agendado e escuríssimo haja permanecido nos idos do século
XIX – sorrir assim limpamente, em praça pública, quando todos continuam forçados
a nos olhar com piedade. Quebra a estrutura. Quem viu/vê a morte de frente ou
de banda, quem foi derrotado na batalha pelo filho ou está na iminência de ser
abatido pelo câncer, não tem condições de ser flagrado de repente pirando ao
som de “Mamma mia!”. Quem desceu ou descerá ao que combinamos chamar
carinhosamente de fundo do poço não pode me vir com uma dessa, de circular por
aí happy-hourizando com os amigos e dando pinta de feliz. Onde é que nós
estamos. Por mais que nosso pós-modernismo iconoclaste as instituições – ou
exatinhamente porque nosso pós-modernismo iconoclaste as instituições –,
entramos em desespero de causa quando se ameaça a última fronteira de crença e
solidez, a sagrada tristeza que vem com a indesejada das gentes. Temos horror à
gafe, pisamos em ovos de avestruz perto de pessoa que muito sofreu com a Cuja,
e tudo que pedimos em troca é que a dita pessoa se comporte condignamente em
relação a nosso ar compungido, de preferência com sorriso amarelo e lágrima
indisfarçada durante a conversa. Só faltava mesmo essa de ela nos dizer,
animadíssima, que está superplanejando uma incursão pela Broadway no próximo
ano. A primeira investida é Mamma mia!.
Não só a morte continua assim,
entabuzada. Momentos de convulsão social como este que nos fala geram patrulha
da felicidade mais (digamos) espontânea. Efemérides são bicho ciumento. Ai de
quem atravessar esses dias com outro contentamento n’alma que não o de ver o país
finalmente revolucionado. Ai de quem for flechado pelo amor burguês, de quem se
vir inebriado pela leitura – ou feitura – do desejado romance, de quem se achar
arrebatado dos pés pelo novo filme preferido, pelo emprego recém-tomado, pelo
filho recém-retomado. Ai de quem roçar a timeline do Face com aquilo que lhe
abarrota os olhos: a viagem tão longamente paga, o livro tão dificilmente
lançado, as alcançadas bodas de prata, a bem-sucedida casa própria. Acusarão o
desavisado feliz de alienação, no mínimo; de desrespeito, talvez; de falta de
timing, certamente. Como se houvera timing histórico capaz de censurar as
pequeno-enormes revoluções nossas, as discretas e de estufa sob Olhar Coletivo,
mas comuns à ternura dos revolucionários mesmos. Como se o manifesto de um
sucesso íntimo sujasse a necessidade de gritas maiores, quando, em verdade, é
tudo la même chose.
São parecidos os quereres e
conseguires, apenas momentos diversos de igual pulsão; e é um crime tolher
alegrias honestas – não acintosas nem debochadas – como se enfraquecedoras da
politização geral, tanto quanto seria crime tolher a politização honesta para
não nublar o céu da alegria geral. Como é chato e démodé o mundo de marcadas
antíteses, de contrastes fixos e comportados, ensaiados e inflexíveis. Como é
entediante o assunto que se proclama único, seja qual seja – que nem vida nem
país se fazem de homens de uma nota só, enquanto desdiálogos perigosos, sim, se
fazem de homens de uma nota só. Alegria numa hora dessas? sim, numa hora
dessas: a sempre melhor e mais própria. A alegria não basbaque é, tão ou mais
que a tristeza, sagrada. A alegria não é o contra, não é o anti, não é o pavio, não é o inimigo, não é a Globo. A alegria é a
ânsia. A alegria é a meta. A alegria é a face pronta da busca iniciada, o
retrato final da prontidão. A alegria é o motor e o motivo. O amor e o cimento.
A alegria é o carimbo do trajeto. A alegria é a prova.
A alegria é à prova.
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