Fico para cuspir o coração quando
o Fábio me conta de uma sua aluna de sexto ano, tão analfabeta que se limita –
nos bons dias – a copiar algumice do quadro, sem ideia nem esperança de
resolver a questão proposta. Ainda por cima cheira mal, a pobre, em seu
analfabetismo indigente; mora à margem, descuidada de governo e família, sem
quem lhe alimente os olhos vagos, quem lhe desembarace pensamentos e tranças, quem
lhe providencie o bocado de limpa dignidade que acompanha os cidadãos inclusos.
E como é que chega ao sexto ano analfabeta? pergunta a indignação distraída de uns
e outros. Digo como: sendo trambolhada de uma série para a seguinte, entre
estatísticas que posam lindas na capa das revistas de pedagogia e varrem os dados
remelentos para a cozinha. Sendo ignorada pelos fatos e arrastada na onda de
aprovações, para engrossar porcentagens – até congelar em seus limites, repetir
cinco ou seis vezes a série impossível e ser enfiada num qualquer “projeto
educativo” fazedor de milagres. Eis como. Virando joguete da burocracia nojosa,
que passa anos sem condenar nem salvar de vez uma aluna; e, para cúmulo, caindo
num lar cruelmente passivo, de onde nossos ais de compaixão não podem
resgatá-la tampouco. Fica cuspido fora meu coração, solidário, penalizado, e nem
por isso mais apto para erguer um dedo de solução.
Como nos fere a incapacidade de trazer
luz aos refugiados da guerra invisível!, aos desabrigados do teto impalpável,
aos vitimados pela desgraça que não grita no Jornal nacional. Como dói a dor que não alcançamos com o estender
do braço, a dor que ri do nosso orgulho de ajudar; como dói a dor alheia que
temos a infelicidade de entender, sem que nossa vaidosa importância possa
arranjar-lhe remédio. Como dói a dor que anda por aí assim, indiferente à nossa
boa vontade, indiferente à culpa que martelamos no travesseiro. Dói com doer
duplo: o da piedade em si e o do debater-nos em nossas limitações. O da empatia
em carne viva e o da humilhação de não sermos tão indispensáveis. O doer de
amarmos e o doer de que todas as gerações, pelos séculos dos séculos, não nos
amem em retorno. Como
heróis da atitude. Como anjos da iniciativa. Como deuses da providência.
Dói-me com terror, por exemplo, a
decepção alheia; daria uma boa metade do fígado para nunquinha enxergar o
desapontamento nascendo, profundo, em olhos nenhuns. Dói-me como assassinato a
cena do pai, do filho, do marido que não chegou a tempo da despedida última, e
permanece num sofrer aturdido e suspenso, sem fecho, sem direção. Dói-me bofetadamente
o transplante que perdeu validade por causa do atraso de aviões. Dói-me com
certo exagero assistir às memórias do pós-ponto final das relações. Dói-me com
dor impressionante a mãe que, no meio de longo esforço e sozinhez, não encontra
o nome do filho na lista dos aprovados ou dos sobreviventes. Dói-me de punhal a
matéria que mostra velhinhos de asilo conformados à solidão que não acende a TV
na novela, não passa lenço úmido nem troca o lençol. Dói-me de navalha aquele
olhar, qualquer olhar de gente que foi embora de si mesma e deixou o corpo,
abandonou o corpo num desarvoramento melancólico, sem mapa nem data. O olhar da
alma que debandou sem cumprir aviso prévio, da ânima que voou sem voar. Da vida
indiferente a viver.
Dói-me toda acumulada culpa do não-martírio; todo despoder de desejar que a dor abismante do mundo nos carregue em compensação.
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