Me perguntaram dia desses por que eu escrevia. Adianta nada
dizer que gosto – ora, gosto; vai-se muito bem ao cinema porque se gosta,
assiste-se a musicais porque se gosta. Porque se gosta, abrem-se gibis e demais
revistices; joga-se golfe, passeia-se no Parque Lage, compram-se bijus,
devoram-se quindins. Gostar é unicamente o prazer criança, o id livre das
cobranças de dar, mergulhado na água limpidazinha do receber. Gozo puro do
momento sem contrato, sem aplicação íntima, sem sofrida retribuição. Não se
escreve porque se gosta; escreve-se, inclusive, apesar dos pequeninos desgostos
colhidos no texto – que ele, como filho parido, exige renúncias vitais,
sofrimentos de tempo, maus sonos, dramas de vocabulário e vírgula. No texto já
criado e adulto, há um passado de choro e ranger de dentes.
Não, não se escreve porque se gosta. Também não se escreve
(fora de remuneração) porque se precisa, considerando o que existe de
emergencial e faminto no precisar. Tanto que em viagem, em meio à realidade
alterada da viagem, não bate fissura alguma pelos dias de afastamento do
computador. A vida vira outra e acabou-se: sem sedes, sem saudades, com
diferentes plenitudes. Escrever é precisão, como pão, legume, amor, dinheiro?
Não é precisão. Nem escrever, nem musicar, nem pintar, nem bordar, nem tecer,
nem esculpir, quando não rola pagamento necessariamente envolvido – não são
precisões. Preciso é tudo que nos sustenta como ar: sem férias. Que mata pela
ausência. Ininterrupto.
Escreve-se, sim (pelo menos eu escrevo), porque não há
alternativa. Porque não se quer ou não se deve ou não se consegue resistir ao
refluxo, ao vomitório de vida ou de morte que vez em quando nos assalta. Porque
nos depura ou nos compensa, nos alivia da incapacidade de dar a cara a gás no
protesto das ruas, nos absolve parcialmente da sofrência ou contentamento
extremos, nos liberta de ter opinião sozinhos, nos salva do incômodo demasiadamente
engolido, do sapo longo tempo aguentado, da beleza de insuportável excesso.
Porque escrever nos desesmaga, nos distrai de uma criação muito interna, muito
eterna; porque nos organiza às avessas, nos reconstrói de-foramente, nos verte
em espelho traduzível. Nos permite cumprimentar a gente mesma transformada em
fotografia de ideia. A alma adaptada em tinta verbal.
Escrever nos faz toleráveis para dentro e existentes em público.
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