Pronto: mal começaram as novelas
– sete e nove – e já tem mãe de protagonista rica passando sabão na herdeira
por causa de escolha amorosa. “Ele não é para você, minha filha; é um
pé-rapado, é um pouca-roupa, é um bicho-grilo, é um usador de havaianas, é um ganhador
de salário mínimo, é um interesseiro que só está de olho no seu cofrinho, não é
frequentador das mesmas salas e bailes e terminais aéreos e Daslus.” Engole em
seco a matriarca devotadíssima, afiando o argumento fatal, mexicanamente
atirado: “Vocês são de mundos diferentes!”.
É velha a história, em todas as
acepções. Ser “de mundos diferentes”, no reino encantado de novelas de fada e
semelhantes fabulices, significa que uma desfila Gucci e o outro salta todo dia
na Central; um não estranha a conta de 846 reais no restaurante e a outra
sustenta cinco filhos com a metade – por dois meses. Realidades extremas, concordo.
Alta improbabilidade de uns tais opostos conseguirem (após o gozo que os reduz
ao simplesmente humano) ajustar os assuntos na mesma frequência. Alta
improbabilidade, não impossibilidade decidida: vai que calha, como um raio, de
duas biografias tão distantemente corridas terem passado no caminho pelo mesmo
ponto nevrálgico – terem um dia atropelado a mesma música, o mesmo cheiro, o
mesmo amor de cinema, a mesma encrenca de família. Vai que acontece de um dos
corações ecoar com a prece antiga do outro, responder secretamente ao sonar
invisível; encaixar-lhe no ritmo mais do que no conteúdo; corresponder-lhe à
essência mais que à minúcia. Assim: porque sim. Vai que. Não acredito
firmemente em cinderelices, nem duvido por inteiro; considero que harmonias de
amor impensável se criam misteriosas, e que las hay, las hay.
Mas o que hay também, e que mães
de protagonista rica esquecem necessariamente, é a chance não muito remota do
contrário: os dois elementos de um casal possível foram criados nos bancos da
mesma praça, fizeram aula no mesmo cursito, receberam bronca da mesma
professora de piano, marcaram na praia com a mesma tchurma, pegaram pra Dubai a
mesma primeira classe – mas são de mundos galacticamente diferentes. Uma principiou
a crer que o universo é seu mordomo, o outro agarrou nojo às colunas sociais e
se alistou missionário na África. Um sonha ser paizão desde a segunda série
primária, a outra vomita só de lembrar que existem criaturas com menos de 16
anos. Uma é dark gótica e cultua indícios de morte, o outro é apolíneo e passa
o dia irritantemente solar. Um é primata consumado e mal sabe grunhir duas
frases, a outra quer que o apocalipse chegue em forma de biblioteca. Que tem
que hajam compartilhado tios, escolas, sítios e colos de babá? se são, estes
sim, de dimensões irreconciliáveis – divorciadas não por incidente financeiro,
mas por abismo de gênio, caráter, psiquê, sistema de saúde moral, crença de
futuro. Eis a sólida das diferenças: quando deixa o atrito contornável e vira
guerra entre espécies.
Para o outro não ser polo
intangível, há que haver a mínima corda de sintonia – a mínima –, aquele
terraço mental aonde os dois sobem simultâneos, aquele canal afetivo de que
ambos têm exclusiva assinatura, aquela senha compartilhada de wi-fi repentino. Pra
quem gritou “sexo!”: não mesmo; não suficientemente. Há que haver, muito por
dentro, a semelhança indizível, de tudo desculpante, clássica, fundamental,
eterna. A semelhança xis onde as
almas se beijam de beijo inquestionável, onde se tocam no nervo cuja supremacia
compartilham, onde fazem amor no cimento da palavra, erguendo, construindo. A semelhança. Aquela que não obedece a
alheias nem universais teorias, nem a impressões de revista, nem a capítulos de
Freud. Aquela que a cada dupla se apresenta numa felicidade de prêmio. De
susto.
O muito equilibrado ponto em que existe mais facilidade que esforço de perdão.
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