Toca-me o falado por Marina
Colasanti numa sua crônica, “Cada vida é um romance”: “Uma pintora me conta que
o passado começou a refluir na sua alma. E ela decidiu dá-lo de presente aos
filhos. Está escrevendo, em vez de pintar. Não apenas o passado dela, mas o da
família, fatos que presenciou, histórias que a mãe lhe contou, que os avós e os
tios lhe contavam quando ainda menina. E porque sabem que está escrevendo, os
parentes lhe contam mais. E quanto mais escreve, mais o passado cresce, mais se
torna o documento de uma época, mais ela tem a sensação de que pode vir a
interessar a alguém além dos filhos”.
Dar o passado de presente:
eis uma beleza que nunca me ocorreu, eu que de presentes tanto gosto. Já
croniquei o quanto me encantam o ato da escolha carinhosa e o do embalamento
colorido, se bem que sejam processos coroadinhos de angústia: é do tamanho, é
da cor certa? será do agrado? será repassado? será repetido? Só nunca me dei
conta, suficientemente, da necessidade tão linda de embrulhar o que talvez mais
importa, além de nosso amor e tempo mesmo; da necessidade de empacotar, a certa
altura, o que fomos e vivemos, o mais fielmente possível à narrativa original. A
cada momento nos relatamos pela boca, pelo Face, por orgulho – por ancestral
orgulho de nos ver enxergados –, e nem sempre sem a photoshopada básica no fim
de semana real, na ideia crua de terra batida. Nos contamos muito ao sabor do
vento, muito no lá-e-cá das novas opiniões se erodindo e se brigando, muito no
meio do som e da fúria. Nos contamos de fora, no ímpeto, com enfeite; pouco
paramos para nos narrar de dentro. Pouco paramos para nos entregar como álbum
de fotos verbal a quem interessar possa.
É raro confessarmos com nudez
o quanto, de nosso pequenino ponto de vista, foi dolorosíssimo o voltar à
escola após o corte de cabelo; o quanto de ciúme havia naquele riso pelo
tropeço do primo; o quanto de ressentimento, naquela proibição de correr no
recreio. É raro dizermos mais que – “tudo bem” – quando Mãe nos pergunta sobre
o dia, é raro vencermos a preguiça emocional de expor a confusa ansiedade do
trabalho de grupo, de admitir a tentativa de ingresso no grupo da garota bonita
(ou do guapo mancebo), só para ter a discreta alegria de roçar-lhe os pelitos
do braço não mais que de vez em quando. É tão preciosamente raro deixarmos cair
o mistério enfim, ao menos no fim; ao menos então revelarmos que legamos
diários e cartas, recortes e agendas, papelões e envelopes cheinhos das velhas
respostas, cheinhos de nossa velha pessoa. Assumirmos então que, na falta de
anterior competência ou coragem, nos colocamos em testamento. Nos estampamos
ali como realmente éramos, com os pensamentos insuspeitos, com as simpatias
inconfessas, com as esquisitas manias dos intervalos de convivência, com os
falares e cantares sozinhos, com as dores que não comentávamos para não nos
apontarem hipocondria, com as cismas adolescentes de nos dissecar em listas,
com os gaps de indefinição de
existência, com os imensos remorsos de atos minúsculos, com os desesperos
minuciosos do trabalho, com as impaciências sociais, com os instantes
absolutamente apolíticos, com os preconceitos que tentávamos extirpar a canhão,
com os sofreres miúdos que escondemos dos pais para não ouvirmos deles sobre a
fome na Somália, com os sorrisos que distribuímos amarelamente para só pedirmos
solidão. Tão desejável e impossível: o documento definitivo que nos permita
(dar a) conhecer afinal, jogar luz na biografia autêntica que tanto morre sem
escrita e leitura. O raio-X. O portal. O Graal. A paparazzice última. O
gabarito comentado. O roteiro do enigma, cena a cena.
O passaporte para a insustentável leveza do ter sido.
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