Numa das cenas de narrativa
estonteante que abrem A duquesa de
Langeais, Balzac nos faz ouvir a febre musical da mulher-título. A cuja se
esconde num convento e, tendo só o órgão da capela para servir de correio com o
ex-amante, de repente entorna fogo e paixão no teclado e assusta de prazer a
assembleia: “O francês adivinhou que, naquele deserto, naquele rochedo cercado
pelo mar, a religiosa se apoderara da música para nela pôr o excesso de amor
que a devorava”. É dos beijos mais sidos
da literatura, entre os que nunca foram.
Cismei no tema. Onde andamos
enfiando esse excesso de amor que a quase todos nos devora (porque a insônia
descomunal dos dias e das noites, o incômodo horrível que se disfarça entre
força e tédio, a perturbação sem nome que nos sacode do sossego equilátero não
é senão um vazamento-surpresa de amor)? Normalmente fechamos a torneirinha
amorosa com pudor, para não quebrar de ternura nossas criaturas preferidas. Não
podemos, não devemos estalar costelas alheias na pura torrente da vontade. O
resultado é que nos sobra uma horrorosa paixão acumulada, um ímpeto de fome e
de carnaval que não deixamos esgotar-se nem no sexo nem no abraço, nem no estar
com amigos nem no morder a bochecha do filho. Para onde canalizar o mar da
libido assassina, a fim de evitar sermos banidos do mundo por troglodice?
Haverá os que digam para a música,
para as artes, como a tal balzaquiana. Não discordo, desde que se empunhe
direito a faca de corte duplo. A arte só nos desacumula, só nos liberta, só nos
desarde de amor quando por nós produzida; quando nos exige o esforço do
pensamento ou da catarse a ponto de exaurir-nos de existência. Arte vinda de
fora é o contrário – é a atiçadora nervosíssima do amor que já nos afogueira. Quanta
lenha no filme que nos semeia diálogos, na história que nos chupa para dentro
de relações imprevistas, na música e no poema que nos botam em prontidão de
ideia, no quadro que nos reacende a adoração da beleza possível! Se maior nosso
contato com a ação do outro, tanto maior a faísca da nossa aflição de resposta.
Que aquele amor vulcânico a chatear-nos e transbordar-nos nada mais é do que a
sede de criação. A sede extrema de desengravidar do mundo que nos fecundou; a
sede de replicar-lhe diariamente uma nova fornada de nós mesmos.
Liberamo-nos da gravidez dessa
demasia de amor quando fazemos. Fundamentalmente, fazemos. Quando escrevemos
com jorro, quando atravessamos o cego, quando pedalamos a orla, quando dançamos
inteiro o salão, quando mastigamos com ênfase, quando ensinamos com som e
fúria, quando vivemos pessoalmente a entrevista, quando colhemos sagradamente
as flores, quando mutiramos a construção da casa, quando choramos nos dedos o
corte da cebola, quando medicamos o outro até adormecê-lo no colo, quando
lavamos o carro, quando sovamos o pão. Entramos em parto ao nos repartirmos em
mil e uma fogueiras de eus que se combustem de entrega. Entramos em parto ao
fazer delivery de cada nossa parte estimulada de afetos. Encegueirada de
afetos.
Entramos em parto quando nos vestimos de trabalho; quando alastramos o incêndio que nos habita antes de sufocarmos na autorredoma de oxigênio excessivo.
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