Em plena Itália, Clarice
(sim, a Lispector) desabafou certa vez um seu destalento: “Na verdade não sei
escrever cartas sobre viagens, na verdade nem mesmo sei viajar”.
Sei viajar, mas entendo Clarice.
Também, como ela, não sou apegada a narrar de fora, canetando ou digitando
aquelas miudezinhas do roteiro – quandos e ondes, estradas e hotéis, episódios
e teatros, incidentes e museus – que quase todo leitor de viagens deseja beber,
amantíssimo de detalhes. Não tenho a paciência científica de encadear dicas e
registros, contar os tintins por tintins de cada hora de cada dia,
especialmente tintins equivalentes a metros, anos ou cifrões. Não sou a
olhadora objetiva, a correspondente de guerra que se há de demorar na
reportagem; não sou a embaixadora de medidas, a enumeradora de lojas, a
construidora de causos com muitos poréns e entãos e daís e por conseguintes,
firmemente dedicada à vida como ela (parece que) é. O puro da peripécia não me
encanta – e fatalmente morreria à fome se só fosse remunerada por altos
jornalismos e agatha-christices exatas.
Porque me apaixona o voo
absoluto, livre do antes e do depois, é que amo sobretudo contar sem
compromisso de conto, historiar sem compromisso de história, sem a tecelagem dolorosa
de enredos e o sofrer de suas inverossimilhanças. Não há inverossimilhança
quando nos narramos de dentro. Por fora a coisa tem de ser impecavelmente
lógica, com atos e consequências, e obediência bonitinha a nossos perfis. Por
fora a Morena tem de ter razões poderosíssimas para não revelar à delegada sua
condição de traficada humana; por fora a Nina há que nos explicar direitinho
por que raios não salvou as fotos no próprio e-mail; por fora não se perdoam
(nem se devem perdoar) nenhuns deslizes na trama, nenhuns furos irracionais que
desmintam o fato razoável. Por dentro o esquema é outro. Na maciez libertária
da crônica, por exemplo, o narrador se escarrapacha e não é intimado a dar
satisfações caso resolva escrever balançando na rede – a respeito do balançar
na rede. Não se desculpa se fala e desdiz, se afirma e desmente, ou com tanto
açúcar se desdiz e se desmente que não causa maiores danos à paz mundial.
Inexiste o medo de que uma ridiculice desmorone o prédio, por não haver prédio.
Crônica e poema líricos são a literatura sem tijolos; literatura com argamassa
de vontade e luz.
Não significa que, por preguiça
de construir fatos, eu não os ame. Amo-os porque não suporto a cabecice dum
filme ou livro sem enredo; tolero por trinta segundos (olhe lá) qualquer
amofinação experimental. Mas também não faço boa digestão da história só fato,
da faca só lâmina, da trama inteira de acontecências sem alma nem fôlego. Pior:
sem uma quantidade generosa de amores. De (dis)sabores. Não me venham, pois,
com não sei quantas léguas sub ou sobremarinas, com expedições ao éter ou ao
magma, com maquinarias velozes e furiosas, com guerra poeirenta contra etês ou guerra
marítima contra baleias assassinas. Não me venham com a testosterona assexuada
dos episódios que explodem em dados, marcas, coordenadas, nomes científicos. Se
há intrincamentos políticos, que haja também o desespero do jedi que quer
salvar a única amada. Se há cruzares de capa e espada, que haja também alguém
chorando na torre sob a revelação do segredo de família. Se há zumbis engolindo
como tiranossauros tudo que se move, que haja também dramas humaníssimos de
inteligência – mais do que armas, mais do que correrias. Que haja mais amizade
que areia, mais beijo que engrenagem, mais trauma íntimo que fratura exposta,
mais cotidiano que trincheira, mais conversa que discurso. Ficando assim – na
umidade do viajante, não na secura da viagem – facilitada a mastigação da
trama: com o bolo de fatos amolecido à base de suor, lágrima, linfa, seiva, saliva.
Tanto melhor nos invade o texto quanto mais nos lubrifica de humanidade intransferível.
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