“Sabe quando a pessoa já chega de
costas? Pois é. Eu hoje aqui.” Assim meio-murmurou uma colega de trabalho,
visivelmente exaustíssima. Eu nunca tinha ouvido a expressão, mas o contexto e
as olheiras da pronunciante não tiveram dificuldade de esclarecê-la: chegar de
costas é já aportar onde quer que seja em posição de ir embora, entrar com o
espírito de ré, embicado para a saída. Estar e não ter vindo. Vir e não ser
vindo. Vestir o dia, tarde ou noite com pijama por baixo.
Me pré-defendo ao esclarecer que
não tem a ver, em cinema-teatro-palestra, com gostar de sentar na ponta. Sempre
sento na ponta, por motivos de praticidade explícita: cada vez mais
a distância entre fileiras é de 0,7 centímetro, e me amofino horrores de amofinar
pessoas na passagem; mais: quero garantir meu maior conforto em quaisquer
emergências banheiras. O providencial lugarzito na ponta, longe de me pôr na
defensiva, dá-me tranquilidade de entrega. Com a fácil evasão assegurada, não
há preocupações azedando a relação entre mim e o conteúdo que enche a sala. Não
quero, mas posso sair. Diferentíssimo de a pessoa chegar do avesso, querendo e
não podendo girar o volante, toda trabalhada na amargura da presença
obrigatória.
Aluno, por exemplo, é uma peste
para chegar de costas. Vem normalmente tresnoitado – ainda que às duas da tarde
–, de cara amarrada com nó górdio, de olhos mal-amados ou descrentes, ou ambos.
Vem se arrastando, vem se liquefazendo pelas paredes, vem se lagartixando nas
portas e derretendo pelas cadeiras, órfão de consciência e interesse – mesmo
aquele interesse de artifício, puramente profissional, que se reserva às coisas
não prazerosas mas úteis. É certo que eu não gostava de estudar, porém o ter de me gasolinava suficientemente.
Acabou. Quase acabou aquela espécie de aluno que não considerava sua mera
presença, mole e alheia, como favor inestimável ao professor. O que hoje “comparece”
às aulas são 85% de walking deads restritos a dúvidas viscerais, edificantes:
“Posso ir ao banheiro?”, “Quando é o próximo feriado?”, “Vai liberar mais cedo
hoje, fessora?”. Monumentos erguidos ao mais nacional dos descasos, à mais
patriótica das ineficiências.
Também me dá vergonha quando vejo
um desses casais modernitchos que se esbarram no meio do dia, mas não se estão:
um com seu tablet para um lado, pinto no lixo, mostrando ao outro os últimos
gadgets virtuais adicionados; o outro meio atento à exibição, meio checando o
Face no celular, risonho e comunicativo como se ali estivessem os 3.047 amigos
todos; os dois sem ser dois, sendo antes multidão de solitários, isentos de
soma verdadeira que demanda mais que o cruzar fracionado de olhos. Por sinal,
que se passa neste mundo que ando frequentando para virar tribo
pós-apocalíptica, cada qual zumbizado por sua matrix de bolso? Que raios
aconteceu de tão ligeiro, de tão vicioso há coisa de cinco ou seis anos, a
ponto de nos tornar exército de fantasmas fisgados pela realidade que não é?
Que nos aconteceu a ponto de desmarcarmos futuros, de ignorarmos presentes, de
renunciarmos à vida com oxigênio – com a dor e a delícia do oxigênio – em
benefício de telinhas brilhantes, dessas telinhas que GPSsam 26 horas por dia
onde estamos só para dedurarem onde gostaríamos de não estar?
Degeneramos numa raça de
impacientes que almoça mastigando sem gosto, fissurada no barulhito de
“mensagem! mensagem!”. Involuímos para um Homo
aborrecidus que espia o horário na telinha brilhante após 14 minutos de
filme. Regredimos à posição fetal de uma espécie caramuja, o universo sou eu; tudo
(para além de minha urgência de nada) gera insuperável enfado, rebeldia sem
causa de desenfronhar-me, vontade sem razão de descompromissar-me. Right now.
Pra quê? pra ir o mais rápido possível entediar-me em outro lugar. Há tantos
nos quais compartilhar minha ausência!
Existir também é facultativo. Exige preencher de escolha o acaso da aparência.
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