Sempre me intrigou. Em qualquer
texto acadêmico ou afim, em qualquer bate-papo esquinesco, já reparou como é
comuníssimo os homens serem referidos pelo sobrenome, quando é raro que
mulheres o sejam? Em se tratando de academices, então, é batata. Ninguenzinho
em sã literatura escreverá sobre o sarcasmo de Joaquim Maria, as espumas
flutuantes de Antônio, os perfis femininos de José, as veredas de João. Mesmo
poucos arriscarão suspiro a um Carlos sem Drummond, a um Manuel sem Bandeira.
Em plena informalidade, idem: é cômodo e certo o “Ô Feitosa! Como vai essa
força?”, o “E o Vascão, hein, Rodrigues?”, gritado com calorosa fraternura no
barzinho. Muito entretanto, é quase nada provável que se trate de igual maneira
uma sua amiga Rita Feitosa, uma velha professora Lúcia Rodrigues – tanto quanto
é improvável que uma tão querida Clarice vire somente Lispector; uma Florbela,
só Espanca; uma Adélia, simplesinho Prado. Por que, me pergunto, homens são
aceitos lindamente sem nome, enquanto mulheres ficam plausíveis sem sobrenome,
perfeitamente?
E me respondo, já que o
intrigamento é apenas retórico e sei, malgrado meu eu sei, quanto há nesta
terra de velhos patriarcalismos. (Sobre)nomes masculinos são empresas. Homens
são os troncos de família; mulheres,
os raminhos enxertados; e não é por outra coisa que nós, nós unicamente,
acabamos modificadas de sobrenome e história no casamento, como quem passa da
primeira à segunda firma. Aliás, nós-vírgula: continuo tão integral em meus apelidos (como dizem os lusos) quanto
antes da união civil, partilhando só amorosamente o belo Flora de meu Fábio e
cedendo meu Duarte só amorosamente. Chegamos inteiros ambos, permanecemos ambos
inteiros, sem possíveis aproximações de matrimônios com patrimônios.
Aflige-me o ser homem pessoa
jurídica, e mulher ganhar abordagem de pessoa física livre e solta – como quem
desembarca na vida e na relação trazendo só si-mesma, com a roupa do corpo que
recebeu na pia de batismo. Como quem foi moldada para receber diferentes Legos,
trocando a peça que se lhe adapte e mantendo exclusivamente o rosto do nome
próprio. Aflige-me essa distinção sutil e surda de chamamento. Isto posto,
passo à vantagem dessa nossa condição de Marias, Auroras, Lucianas, Renatas, Reginas
e Alices, nuamente. Quando nos citam, citam-nos o valor absoluto, sem a quantia
relativa que pesa atrelada a LTDAs e genealogias. Nós nos somos. Se nos tiram
grife e contrato, se não nos dão prêmio e pensão, se nos enfiam no sanatório
oitocentista ou queimam na fogueira medieval, nós nos continuamos. Bastamo-nos,
de tão leves. Basta-nos a pequenice do verbete: de todo cantinho erguemos a
construção enciclopédica. Seguimos frutificando em livro da Martha, gol da
Marta, choro da Chiquinha, poema da Cecília, show da Madonna. Compramos o CD da
Marisa, discutimos o veto da Dilma, comentamos o desfile da Gisele, babamos na
escultura da Camille, nos quadros da Frida e da Tarsila. Sonhamos romances de
Jane e filmes de Audrey, dançamos remelexos de Elba. Fungamos boleros de
Dolores. Gargalhamos desbocamentos de Dercy. Lamentamos despedidas de Carmem,
Amy, Marilyn, Diana. Na ligeireza do substantivo único – Maria, Madalena, Cleópatra,
Vitória, Bethânia, Nefertite, Heloísa –, pousamos exatas e definitivas na
história.
Mulher é flutuável. Eu sou. Desprecisa-se de brasão para plantar memória.
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