Li num artigo de há bastante tempo que, a cada duas semanas,
uma língua desaparece da Terra. Das cerca de 6.000 que hoje existem no planeta,
a previsão é de que 90% estejam extintinhas em 2100, ou seja: 5.500 idiomas
devem ir para o beleléu ainda neste século. Quase o mesmo que dizer que de
quinze em quinze dias, pelos próximos cem anos, alguém acordará literalmente
falando sozinho.
Fico pensando nesse último usuário nativo de qualquer
língua, chocada com a imagem de horror kafkiano. Todos os demais interlocutores
morreram, nenhum nasceu; ninguém a quem se tenha o sagrado dever de transmitir
uma gramática do pensamento. Fico igualmente matutando, com uns pequenos
terrores, se alguns de nós não vamos fatalmente ser engolfados nesse bolo. Não que
o português esteja ameaçado; é uma das vinte línguas mais praticadas no mundo –
se não me engano, uma das dez –, o que lhe dá relativa imunidade à extinção.
Mas quem gosta de ler repare: certos portugueses têm andado mais e mais
extintos. Aquelas formas que (agora nem) tantos aprenderam no berço, no ditado
da professorinha de primeira série, no colo dona-bentíssimo de Monteiro Lobato,
nos braços saborosíssimos de Alencar e Machado? vão-se escoando.Vão-se
dissolvendo aqueles portugueses em que “entendera” e “entenderá”, “cantáreis” e
“cantareis” eram coisas de tempo distinto, e não um único verbo sobre o qual
despencou um acento de percurso. Aqueles portugueses em que “com certeza” era
expressão separada sem titubeio, em que “mas” e “mais” eram questão manjadíssima
pelos bichinhos do primário (quanto mais pelos barbudos do doutorado), em que
não tanto fazia o jeito como nos desse na telha de grafar “tigela”, “chuchu” e
“exceção”. Aqueles portugueses em que as segundas pessoas do discurso escorriam
da boca conjugadinhas feito mel (OK, ninguém há de falar século-dezenovemente
pela rua; mas e suspirar, não posso?). Aqueles portugueses em que havia uma
reverência limpinha, um respeito amoroso à melhor distribuição do período, como
quem escrevia frases com sachê: palavras cuidadas, escolhidas, passadas,
dobraditas no capricho da gaveta. Não o português amarfanhado em que se pode
tudo. Não o português terra de Marlboro, em que se assenta e põe as botas para
cima sem registro de nada.
Por favor: não sou purista – e quem me lê com um mínimo de
atenção gramatical me sabe não purista. Meto uns oblíquos onde (a Dona Norma
diz que) não devo, atravesso sufixações, misturo um e outro pronome quando me
parece adequada uma carinhosa mixórdia. Também não sou das tais que embirram
com o internetês; uso emoticons adoidado e discordo de que um ser humano esteja
condenado a desaprender um dialeto ao aprender outro (assim não fosse, minha
língua natal tinha virado fóssil nas primeiras aulas do Brasas). Mas note: na
maior parte do tempo, I hope, eu “erro” consciente. Erro sem que, por vício, o
erro me impeça de “acertar” em outra chance e mais oficial. O que mais me
amofina é que não se andam aprendendo portugueses suficientes para equivocar-se
por escolha; absorve-se o basiquete necessário a ser minimamente compreendido e
usa-se o mesmo português cambaleante para o mail, a declaração de amores, a
redação de vestibular. Não se bebe um leque de idiomas pátrios, desde o dândi
oitocentista até o baixo-burguês-informal, desde o literário até o barzeiro, do
internauta ao executivo: cumpre-se uma meia dúzia de requisitos linguísticos e
está bem, está bom, é o que basta. Não se verga o foco, não se amplia o
alcance. O falante não se interessa – se instrumentaliza.
Longa vida, por isso, aos que ainda chamam o português de
flor do Lácio. Aos que completam qualquer “Ora!” com um “direis”. Aos que
comentam que o céu está plúmbeo. Aos que alternam “devido a”, “por causa de”,
“em virtude de” para além do onipresente e modorrento “por conta de”. Aos que
se esbaldam de rimas ricas e gozam com as preciosas. Aos que não se algemam à
praga egípcia do empresariês, didatiquês e politicorretês. Aos que se apaixonam
quando o pretê cita Drummond. Aos que se arrepiam de ternura quando flagram
dedicatória de mais de meio século. Aos que abrem o Volp recorrentemente para
checar o maldito hífen. Aos que sangram, aos que comem, aos que choram
português. Salve, salve.
Virem patrimônio intombável os que querem a Flor tão mais bela quanto menos inculta.
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