Eu na padaria escolhendo
lanchices bonitas para o Fábio. Por perto uma senhorinha toda inha, franzina na
raiz da palavra, de fragilidade porcelânica. Passa uma atabalhoada encarnada em
Átila, o Huno, abalroa a senhorinha, a senhorinha acusa o golpe num ai!
espavorido, a huna olha pra trás indesculposamente (e de maus bofes), segue em
frente como se não, como se nada. Fica ao meu lado só a sombra perplexa da
senhorinha, umidamente ainda mais frágil, mostrando-me a clavícula fraturada –
ma-gri-nha! – em anteriores aventuras e narrando as desculpas pedidas em
anteriores encontrões.
Um esbarrão no meio da semana,
ligeiro, anônimo, bruto, indesculposo; um voltar (que era quase não-voltar)
seco de cabeça, uma indiferença apressada, uma até indignação doentia, e eu
pude constatar o ser humano a liquefazer-se numa tarde pacata de senhorinha que
virou humilhação. Isso é que chorava nos olhos da senhorinha: humilhação. De
pequena que era, minusculou-se numa coisa doída que nem merecera ser vista, que
perdera mesmo a chance de perdoar porque não havia perdões solicitados. O que a
deslocara fora menos o embate físico, desigual, do que a miopia da outra em não
lhe adivinhar a dor dos ombros, a fraqueza provável, o histórico médico
possível. Não se curvou da pancada, a senhorinha. Curvou-se porque, sendo
atropelada no que era visível, foi duplamente espezinhada no que a huna não
via. Atacada no que a huna mais deveria respeitar, exatamente pelo receio de
não estar vendo.
Costume nosso. Atropelamos o que
nos cai debaixo do nariz – péssima coisa; mas o ainda pior dos piores é que
levamos de arrastão o que nem longe suspeitamos. Batemos na manha da criança
mas não vemos a solidão abissal que nossa ida para o trabalho representa (justo
agora que ela queria conversas longas, pra nos fazer desmentir o coleguinha que
caguetou: Papai Noel não existe). Gritamos com a atendente de telemarketing mas
não deduzimos a grosseria que ela ontem suportou do namorado, e que a trouxe para
o serviço com a autoestima em carne viva. Fazemos slam! com a porta do quarto
na cara de quem nos oferta consolo, mas não supomos quanto há de fome e de necessidade,
nesses braços disponíveis, de provar que sim, que esses braços são boa mãe. Buzinamos
fúrias no ouvido do motorista displicente, mas não desconfiamos de que sua
cabeça flutua, aerada, porque acabou de receber um diagnóstico de pré-morte.
Atiramos no que vemos (mal), acertamos no que nem mal vemos. Atiramos numa
abstração, acertamos na carne. Esfaqueamos o mito; fazemos sangrar o infinito
anexo.
Não estou dizendo, é evidente,
que devemos passar por cima de toda e qualquer malcriação, descuido,
incompetência, engolindo em seco o sorrisito amarelo porque do outro lado há um
coitadinho que, oh, traumatiza ao mais breve acréscimo a seu padecer. Não estou
dizendo que sejamos basbaquemente condescendentes, quando é caso de repreensão.
Apenas que, no auge mesmo da razão, não sejamos jamantas; não exijamos nem
reclamemos com deselegância (sempre) dispensável; não nos arrebatemos tanto
pelos direitos próprios a ponto de sufocar os – nem por isso descartáveis –
direitos alheios. Não abusemos da oportunidade de tripudiar. Não nos esqueçamos
do torcedor frustrado, do órfão sedento, do ficante abandonado, do aluno
reprovado, do dono de cachorrinho perdido que pode morar no lento, no distraído, no destemperado, no esquecido,
no vacilão abalroado na esquina. Cuidado onde pisa. Cuidado com os bueiros
abertos, tintas frescas e portas de vidro que o outro carrega no bolso e a
gente não vê. Cuidado por onde anda.
Todo ser que se move leva uma clavícula quebrada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário