“Eu tenho um ermo enorme dentro
do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. [...] Faço outro tipo de
peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar
goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão.”
Por isso é que Manoel de Barros
me consola e sossega quando me falam de infâncias felizes muito brincadas em
grupo, muito corridas na rua, muito namoriscadas em fazendas e plays de prédio
(somente poetas e demais seres extramundanos nos consolam acerca das coisas que
só existem por dentro). Sou dona de uma infância muito fabricadora de solidões,
e não raro bate a culpa de considerá-la feliz apesar de excluir outras crianças
– ou muito até por causa disso. Filha temporã, quase década mais nova que a
primeira, não tive companheiros pequenos. Não tive companheiros humanos
pequenos. Cresci enfronhada no mundo adulto sem, com isso, desenvolver
precocidade de atos – porque criança em geral é precoce por competição com
outras crianças –, mas talvez alguma tendência prévia de cismação e necessidade
permanente de ouvir o parceiro de dentro, o quase único das brincadeiras. Levava
horas na construção solitária de “episódios” com bonecos, folhas de jardim,
fiapos de linha, gotas d’água (sim, gotas d’água, que para mim podiam casar-se
e dar filhos como outras criaturas quaisquer). Um elemento que viesse de fora,
infantil, atrapalhava-me; invadia-me o mundo tão conhecido e erigido, tão
confortável de descobertas que me aguardavam a um meu comando. Não é que eu não
brincasse no coletivo; brincava na escola, embora sem correrias – a asmáticos
recorrentes não são aconselhadas correrias. Mas escapava o prazer inteiro da
coisa ao ter de negociar com a brincadeira do outro. Não me impunha muito, por
ter vergonha de gostar de me impor. A consequência é que brincava um personagem
em meu lugar, e todos hão de concordar que não há gozo completo na verdade
parcial. Para isso servem as tias-avós: brincadoras dóceis e excelentes,
inferiores apenas à maciíssima companhia de si mesmo.
Quem vê com olho externo pode
achar-me criança partida, triste de silêncios. Nada mais falso. Sem ser de
grandes travessuras – era, para isso, muito culpada –, passava o dia em grandes
insuspeitas travessias. Demorei um bocadito a pegar cancha de mundo, por não
ter contatos muito externos desde sempre; uma vez, porém, ampliada na sociedade
pela escola, cresci mais rápido pela observação a que era afeita. Continuei boba
para muitos: cresci por dentro, num silêncio fertilizado de leitura. E não
lamento, não lamento o não ter tido dúzias de primos e vizinhos em intercâmbio
de infâncias e casas, não lamento o ter sido quase absolutista em meus reinos e
balanços e quintais, não lamento ter demorado horas e férias ouvindo Lobato em
vez de voltar pra casa às 8 da noite esbodegada de soltar pipa e pular
amarelinha. Não lamento a infância suave dos pequenos tormentos – medo da
queixa de Vó, angústia da fila interminável de formigas –, não lamento o
moleque que não fui nem a ave metafísica que tendia a ser. Não lamento as
façanhas mais sonhadas que consumadas, nem os modismos não seguidos, nem o
cachorrinho que não tive, nem os coleguinhas que não me chegaram a dormir em casa. Fui milionária de
desenhos e impressionismos, de jogos de ludo com as tias e palavras-cruzadas
com a avó, de Bozos e quartos da irmã, de pracinhas e cavalos de domingo, de
cinemas e livros, de amigos-ocultos aguardados, de casas de chá constantes, de
Mônica e Lulu e Turma do Alegria, de jasmineiros e oitis e azaleias. Tudo que
lembro é de uma concretude quase flutuante. Coesa. Presente. Existente de se
pegar.
Infância feliz é isso: aquela que passarinho.
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