Conversávamos e o Fábio notificou: isso dá texto para o
blog. É fato, acato. Eu falava sobre as palavrinhas que me põem urticária,
sendo uma das tais a odiosa render.
Que rematado desespero quando alguém diz que precisa fazer o dia render. O que precisa render é dinheiro
na poupança, ele riu, e eu prossegui estimulada: ou detergente na esponja. Ou
sabão líquido na máquina. Ou policial no ato de desarmar bandidão. Ou
enfermeira no segundo da troca de plantão. Grana, produto, polícia rendem,
assunto rende, um ao outro nos rendemos em revezamento profissional ou solidário.
Encostar a pobre recém-manhã na parede e intimá-la a render, porém, me bota
cansaço antecipado pelas 24 horas todas. É um mãos-ao-alto em qualquer ânimo
possível, uma blitz de energia, uma curra na modéstia do planejamento: acorda,
acorda, tem tempo para café não, para espreguiço muito menos, a reunião é em 18
minutos, o táxi tá esperando lá embaixo, já fez a lancheira do Paulinho? já separou
a roupa pra passar? olha, tem de ver o programa gravado de ontem pra desocupar
espaço no HD, tem de buscar o notebook no conserto e a tia no aeroporto, tem de
passar um pano nos móveis e um sabão no Paulinho que amofinou a professora.
Bora, bora, bora render!!
Eu mato.
Pra começar, abomino a empresariação da rotina, essa mania
horrenda de que o necessário é ser produtivo
– entendendo como tal o fato de aprontar coisas visíveis. Levar, lavar, pagar,
pegar, cozinhar, escrever, arquivar, corrigir, entregar. Não sei você, mas me
vejo previamente asmática no sufoco dos verbos compulsórios; estuprada de
obrigações indigestas. E onde ficam, onde ficam os pequeninos misteres que
integram o dia (às vezes longa, morosamente) e ninguém vê, ninguém apalpa de
riscar da lista? aliás, que ninguém tinha posto
na lista? Onde fica a leitura “só” recreativa, sonhada entre duas sestas e
capaz de lhe revolver as entranhas como relatório algum ever será? Onde fica a
escapadinha pro shopping com a filha, “apenas” para o sorvete inesperado e o
consequente desabafo imprevisto? Onde fica o embasbacamento de duas horas
diante do mar, nas mesmas duas horas que demandariam preparo de reunião e táxi
esperando – mas que então não lhe devolveriam o automergulho definitivo, a
decisão impossível de ser alavancada pela mera foto de computador? Onde fica o
filme de época pego às escuras na TV, sem recomendação de escola nem Oscar
pesando no currículo, mas com uma caixa de Pandora escondidinha que lhe
esclarecerá a dúvida impensável? Onde fica o cinema de higiene desobrigada?
Onde fica o escolher da fruta desconhecida na feira e o ritual de
experimentação? Onde fica o reler de cartas antigas? O escrever de novas? Onde
fica o folhear de álbuns? Onde fica o almoço sem DRs, relógios, planilhas e
celulares? Onde fica o tempo que não é linha de montagem, e sim artesanato d’alma
que te apara e demoradamente fabrica?
Além do mais, nada te torna (ao menos me torna) tão antiprodutivo quanto a faca do verbo exigente
encostada no pescoço. Nada torna mais desagradáveis as tarefas desagradáveis
quanto o ver as não cumpridas como déficit, em vez de tomar as realizadas como
lucro. Se o dia não rende é porque
faltaram dois checks na list de 857 itens para ontem. Tem como? não comigozinha.
Sei o que deve e precisa ser feito, porém não sirvo para porcaria nenhuma se
amanhecer nessa cobrança de antemão, se já acordar devendo. E não sirvo para
porcaria nenhuma se, nos “intervalos”, não me afundar no que não serve para
nada. Vou fazendo, vou fingindo que não há tanto de sobra, vou encaixando
outras realizices em horários insuspeitos, improvisando às vezes, fantasiando
fugas vez em quando, lembrando que falta pouco pro opa! sábado de novo. E foi.
Tudo se murou e construiu, afetando indiferença e se agarrando à leveza para não
constatar sofrimento. Num único momento de vida, um só, ainda hei de “render” sem
alergia e asco: quando o trabalho, sendo bem outro, perder a cara de “que jeito”
e virar “oba!” prévio, como prévios são todos os melhores obas.
Até lá, mãos abaixadas – sobre o teclado. Me desarmo, mas não me rendo.
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