No “Dois sucos e a conta” da Revista global do último
domingo, Maitê Proença comenta uma sua personagem da peça À beira do abismo me cresceram asas (escrita, performada e dirigida
pela atriz). A personagem em questão, segundo o entrevistador, comemora poder
dizer o que dá na telha, e Maitê corrobora: “Quem viveu tanto como elas pode
falar de qualquer assunto com autoridade e sem a cerimônia que você tem aos 50
anos. Elas não têm tempo a perder. Não há aquele verniz todo por cima. [...]
Faço ginástica no Copacabana Palace e só tem velhinhas. Elas falam coisas
inacreditáveis para mim, que ninguém fala: ‘Esse vestido é bonito, mas estava
muito feio em você’. Ou: ‘Minha filha, na sua idade fiz um preenchimento nas
mãos, você não pode ter mãos assim e deixar’. Elas te alertam para o que você
não está vendo”.
OK, elas te alertam. Mas eu discordo de Maitê: acredito
inteiramente que não, elas não podem
falar de qualquer assunto sem alguma cerimônia. Nem as senhorinhas, nem as
criancinhas nem algum de nós outros, os coluna-do-meio. Não compro essa
história quase convincente – porque gordamente propagada – de que os velhitos
já adquiriram autoridade suficiente por tempo de serviço, como não engoliria se
me repetissem, jurando em tribunal, que a infância é a fase da inocência
absoluta. Generalizações tendem à conveniente cegueira das individualidades.
Não é o tamanho do percurso que te penhora toda a maturidade suposta: é um
quer-que-seja indefinível, inclassificável, no jeito de percorrê-lo. Há
pequenos de olhos velhíssimos, coração compenetrado; meninos que por ambiente, índole
ou ambos transpiram uma sensatez inaudita, e com mais eficiência poderiam
talvez ser eleitos para o Congresso, já que não compreendem n’alma como se pode
ter dúvida entre certo e errado. Há senhores e senhorinhas que envelheceram
simplesmente por lhes ter sido concedido o não morrer, mas que levaram a
passagem dos anos como levassem um fardo; nunca se mergulharam, boiaram todas
essas décadas à própria margem, jamais fizeram senão repetir e manzanzar as
cismas, manias, preconceitos de meninice. Existiram muito: não foi
necessariamente muito que viveram.
Ninguém, por mais veterano, ganhou isenção de medir palavras
– pelo simples motivo de que seus interlocutores continuam de saúde e idade
bastantes para receber o golpe. Aliás, ao menos em tese, veteranice dá ainda
maior razão de aumentar a precisão da mira. Experiência equipa ainda melhor pra
equilibrar os ditos. Se já há muito tempo se circula pelo planeta, menos abono
se tem (como até certo ponto têm as crianças) para o fato de desconhecer o
mínimo de delicadeza necessária a um toque, uma dica, uma crítica. Nem a
verdade precisa de bruteza, nem a idade carece de licença-especial de
civilidade; não se aposenta da gentileza – e qualquer forma infeliz de abalroar
o alheio, deixando cicatrizes, não é autoridade nem velhice excêntrica nem direito
adquirido. É nada exceto cansaço, preguiça e a igual falta de educação dos
vinte e verdes anos. Não vira acerto a repetição da mancada over and over.
Humano é direitinho água – a ferver-se, filtrar-se e temperar-se pra ser potável. Portável. Suportável. Ou nosso dizer é capaz de lavar sem mancha, ou ninguém nos procura da fonte.
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