Oficialmente
tenho alergia a poeira, ácaro, barata (sério: barata) e uma leve intolerância à
lactose. Acabei de espirrar agorinha mesmo, com essa espécie de autodefesa que
quem acorda pratica, ao sair da rave de microsseres no travesseiro. Mas eu
queria em verdademente espirrar do mundo ou da vizinhança, com a mesma
eficiência, umas alergias outras que não arredam com spray nasal, comprimido ou
colírio, que não se assustam com cânfora nem soro nem bromelina, e andam pelos
quarteirões acabando com meu nariz emocional.
Tenho
alergia, por exemplo, a papo coxinha fático. Claro, a papo coxinha em geral;
porém aquele estabelecido, já sólido no meio da conversa, a gente está na vibe
de contra-argumentar com vigor, a gente está (que jeito) no espírito de receber
e retorquir, enquanto o fático nos aborda desprevenidos na fila do hortifrúti,
nos encontra cansados no que deveria ser o recesso do táxi, e apenas aborrece
as células sem perspectiva de persuasão nem continuidade. Não queremos
barraquear no caixa do mercado nos exaltando contra os clichês do mau senso
comum, não temos tempo nem gás para perder a sessão de cinema esmurrando ponta
de faca, não estamos organizados mentalmente para escancarar nosso arquivo de
fatos, então um mero silêncio impaciente ou um suspiro de desgosto respondem à
exposição de germes – e vida que segue. Vida que segue inoculada. Abalada.
Indisposta.
Tenho
alergia a gente buzinando, martelando, cobrando, repetindo, me colocando em
estado de zoeira cerebral; fico estomacalmente afetada por nuvens de ruído e ansiedade,
necessito pensar e respirar limpo, senão é dor, dor, dor. Tenho alergia aos
jornais ora cheios de olhares dramáticos, ora bobo-alegremente circenses, mas
sempre odiosos e manipulentos da Globo. Tenho alergia à síndrome de capitão do
mato: gente que não enxerga a própria dor e a própria história, que compra-defende-justifica-aplica em outrem o mesmo cabresto e chicote que lhe são
aplicados. Tenho alergia a ingerências, perguntações e mexeriquices alheias, já
que sou naturalmente reservada e preguiçosa de explicações verbais, Amélie
Poulain por fora e cavalo impossuível por dentro. Tenho alergia definitiva a
arrogâncias e preconceitos: é o CÚMULO da absurdidade nos acharmos – nós,
porcarias que somos pó e ao pó voltaremos, atchim – melhores
pela cor de um órgão, pela pronúncia de uma sílaba ou pela quantidade de papel
na gaveta. Tenho alergia a modas e necessidades compulsórias. Tenho alergia ao
que é grosseiro, desrespeitoso, violento; ao que é incoerente ou muito óbvio, ao
que é afetado ou banal.
Tenho
alergia ao dia sem efeito, à vida sem propósito e ao término sem final.
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