No
bárbaro Boyhood, uma das cenas mais
perturbadoras em sua simpleza mostra a mãe do protagonista se lamentando pelo
fato de o menino estar indo para a faculdade (e a gente sabe que ir para a
faculdade nos Estados Unidos means: sair da casinha onde se cresceu e, tudo
dando certo pelos parâmetros americanos, nunca mais voltar). A personagem
desolada diz que aquele é o pior dia de sua vida – vida que ela resume
rapidissimamente em uma série de marcos: casar, ter filhos, se divorciar,
ensinar o filho a andar de bicicleta, se divorciar de novo, fazer mestrado,
conseguir um bom emprego, mandar a filha para a faculdade, em seguida o
caçula... “Sabe o que vem depois? Hein?” – questiona ela exasperada – “A p****
do meu funeral!”. O garoto fica surpreso com o desabafo e pergunta se a mãe não
está se adiantando em meros 40 aninhos ou coisa assim. Ela suspira, todos nela
suspiramos: “Eu apenas pensei que haveria mais”.
Pois é.
Pensamos. Décadas antes de pensarmos e de vermos Boyhood, Clarice disse: “Quando se realiza o viver, pergunta-se:
mas era só isto? E a resposta é: não é só isto, é exatamente isto”. Se a gente
entra no viver que nem em filme da Marvel (já ansiosos pelas 2, 3, 4 cenas
pós-créditos), se a gente espera o almoço inteiro pela apoteose da sobremesa,
se a gente engole a comida ogromente já na ganância de repeti-la, danou-se. Danou-se
porque não se vive no finalmente; vive-se no por enquanto. A vida não são os
marcos – que, como o nome já diz, existem para nos organizar mental e
emocionalmente, para nos dar referência do quanto já percorremos, para
enfarolar a biografia. A vida é justamente o espaço entre eles; aquela sopa
existencial em que se está mergulhado da primeira à última hora; toda a maratona
entre o choro que abre e o suspiro que fecha. A vida é a argamassa, é o grande
enquanto-isso.
A vida
está lá superacontecendo no ponto de ônibus, e não é preciso que ali se conheça
o amor de todos os tempos, que se pegue o exato carro que vai ser assaltado,
que se receba a ligação dizendo que seu filho nasceu. A vida está em cada jeito
de cumprimentar o motorista, está no flash de reconhecer que eu não precisava
ter falado daquele jeito, está na decisão que se toma de excluir do celular
todas as músicas mais ou menos (se é para aguardar o que quer que seja, que se
aguarde com direito à alegria legítima), está no chocolate que se resolve não
comprar para dar sequência à dieta, está no modo visceral como nos
surpreendemos com o menino de rua e nas reações de desconfiança que a gente não
queria ter, mas tem. Naqueles dez, quinze minutos a vida se desenrola num átomo
de preconceito que se gera ou se quebra, num dilema nutricional que não deixa
de ser filosófico, numa iniciativa musical que na verdade é uma pequena
libertação do supérfluo, num questionamento da personalidade, ufa! e, quando
alguém pergunta o que aconteceu no nosso dia, a gente resmunga que nada. Viver,
esse hábito que escorre entre os distraídos.
A vida
está a pleno vapor num encontro normal de lanchonete, mesmo sem pedido de
casamento: arrisca-se um sanduíche novo, o paladar fica mais propenso a
descobertas, a coisa se alastra e, daqui a vinte anos, você está mochilando na
Nova Zelândia sem nem remotamente lembrar aquela data. A vida está em marcha
ainda que se fique por 37 anos escondido num porão; você pode não ter estudado
Agronomia nem feito um filme nesse tempo, mas pensar não era algo evitável, seu
cérebro continuou se desenvolvendo solitário e neurótico – e o corpo, claro, é
o exato reflexo da falta de movimento e luz; querendo ou não, por todas essas
décadas continuou o processo de se construir ou destruir uma pessoa. A vida
transcorre feroz em cada incomparável bad da adolescência, em cada notinha de
cada teste que se gruda em nossa autoestima, em cada moeda heroicamente
depositada no porquinho, em cada livro esquecível que, porém, foi-nos tijolando
a personalidade, em cada almoço de família que nos deu um curso completo sobre
o Homo sapiens, em cada texto de
Facebook que foi alinhavando ideias apenas suspeitadas, em cada dia normal de
trabalho no qual talvez tenhamos lançado uma frase casual que vai afetar
decisões pessoais e profissionais, em cada hit que se cola no ouvido interno e
muda ações e humores. A vida não é bissexta, é contínua, é permanente,
compulsória; olhamo-la como quem olha as árvores de um bosque, quando
melhormente a entenderíamos com olhos de bactéria (perdoem-me a heresia biológica),
que enxergam não os baobás gigantões, mas a infinidade absurda de
micro-organismos. A vida é exatamente isto: essa louca rede de filamentos
mínimos, essa teia de detalhes que subestimamos, essa coisa ininterrupta que ri
na cara das metas, essa viagem perene entre quem fomos há dez minutos e agora
somos, essa avenida caleidoscópica que se justifica em si mesma. Essa água
corrente.
Quando a vida chega ao mar, acabou-se a água doce: o que éramos se
incorpora a um todo maior. Enquanto temos margens, vamos ser plenamente rio.
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