Mal-aventurados
os miseráveis de espírito – os que, sem a fome que necessita, negociam-se por
uma etiqueta ou um anel; os que nivelam pela própria mesquinhez os motivos do
outro, e o julgam igualmente comprável; os que sabem ter deixado crianças sem
leite mas não engasgam com o champanhe; os que acham seu filho branco mais
digno de vida que o filho negro de alguém; os que demitem por capricho
irritadiço, os que cortam relação por orgulho arranhado, os que prejudicam por
vaidade espetada –, porque é deles já o inferno em terra, povoado de solidões
inevitáveis.
Mal-aventurados
os que não choram de beleza e ternura, os que não se comovem com as tragédias
da Síria nem da esquina, os que não urram por cada poro contra injustiças, os
que não sangram pelos olhos de cada célula ferida em corpo alheio – porque não
haverá consolação do oco que deveras sentem.
Mal-aventurados
os vingativos, os compulsivamente implicantes, os haters profissionais, os
perseguidores, os bullies, os espancões, os amigos das armas, os favoráveis ao
que picota vidas e membros e sossegos e reputações – porque não possuirão nunca
nem a si mesmos, perdidos na fragilidade colérica de quem tipicamente se
rejeita.
Mal-aventurados
os que não tiveram nenhum dia, nenhuma hora de ânsia pelo que é justo e
simples; os que não arderam em nenhum desespero de corrigir as cegueiras
histórias, os equívocos, as ditaduras; os que não queimaram na vontade de ordenhar
os cofres do mundo na tigela de todos; os que não suspiram, insones, pela
chance de avançar em mil anos a psiquê terrestre – porque lhes faltarão sempre
o leite e o mel que restauram as almas com apetite de ser gente.
Mal-aventurados
os que não perdoam, os que não têm a carinhosa compreensão do humano, os que
por princípio julgam e desconfiam, os que preconceituam em vez de escutar com
paciência e café, os que maldam, os que difamam, os que apedrejam, os que selam
a bobagem alheia com a letra escarlate, os que amarram o diferente e o
intolerado na fogueira, os que criam a guerra concreta pela superioridade
abstrata, os que se querem deuses mal sabendo ser átomos – porque não terão jamais
férias internas, consciência macia, gratidão no pagamento ou serenidade na
escolha.
Mal-aventurados
os nunca chamados comunistas, ingênuos, utópicos, românticos, petralhas,
esquerdopatas, grevistas vagabundos, defensores de bandido, acolhedores de
pivete, porque nunca se pareceram com o crucificado e sempre com os
crucificantes. Mal-aventurados os incapazes de empatia, os religiosos de
decorar versículos e não de encarná-los, os que adoram no verbo e esbofeteiam
na vida, os que se escoram no rigor e não no amor, os que querem parecer e não
são, os que não querem ser e parecem, os Pilatos, os covardes, os isentões, os
soberanamente indiferentes, os pilares (de areia) da comunidade, os sepulcros
de mármore que são condomínio de vermes – mal-aventurados sois vós, víboras que
mordem o calcanhar por não voarem, hienas que torturam por não terem a coragem
do afago, bactérias decompositoras que se alimentam do podre; sois vós, porque
vossos limites são pó e ao pó voltarão, vossas heranças cederão ao cupim,
vossas lembranças não morarão nos livros de História. Vossos nomes não puxarão
lágrimas de reconhecimento. Vossos enterros serão com flores mandadas e sem
dores sentidas.
Mal-aventuradas sois: vidas que não regam outras vidas.
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