Não
conheço ninguém que já não tenha celebrado íntima ou pra-foramente o fato de
estar chovendo, quando se pode/deve ficar em casa e dormir (ou ler, ou ver um
filme com chocolate quente, ou qualquer conforto afim). É ao mesmo tempo
inegável, natural e – sim, acredito – preocupante. Por quê? Porque esse gozo
precioso em se sentir tão mais sortudo e acolhido quanto mais o barulhinho de
chuva bate na janela ilustra o que somos: gente que só se considera feliz por
comparação. Gente que precisa do egoísmo quentinho de estar aqui dentro,
protegidamente, e não lá fora – como as criaturas que já ou ainda trabalham, que
ainda não chegaram em casa, que estão resfriadas debaixo do aguaceiro, que
estão presas no engarrafamento, que são enfim mais azaradas que nós, pelo menos
neste instante. OK, OK, eu exagero e estou espancando com culpas um velho
aconchego poético, mas para que servem os amigos senão para atormentá-los com
novos questionamentos? Eu podia estar matando, eu podia estar roubando, mas
estou aqui passando na sua noite delicinha me perguntando se é crônico isso de
tocarmos a vida melhor ao sabermos outros em pior situação. De nada.
Não sei
se forço a barra numa relação esdrúxula, porém não pude deixar de lembrar que o
contrário costuma se dar numa janela metafórica: legiões de seres aparentemente
saudáveis e afortunados entram numa vibe deprê ao ficarem, em horas de Face e
Whats, sob o chuvaréu de fotos de vida perfeita da amigalhada toda. A decoração
de casamento que não pude fazer, o bebê que nasceu gorducho e suculento
mostrando as alegrias que não terei, a defesa de doutorado que nunca
celebrarei, o lanche opíparo que não fiz com 235 BFFs na confeitaria oito
estrelas, a celebridade que não conheci, as fotos mara que não tirei dos Alpes
Suíços que jamais visitei. Não é que tenhamos raiva (eu espero) do
contentamento alheio, das conquistas que não nos incluem; no entanto não nos
livramos do instinto (imagino) de nos cobrar iguais alcances, iguais
disposições, iguais diplomas, como se houvéssemos ficado para trás na maratona
de metas. Estamos de boas em nós mesmos – sofá, emprego, travesseiro, salário
na conta, chocolate quente, barulhinho de chuva –, mas é só ombrearmos com o
coleguinha que vemos não ter crescido o suficiente, que a altura dele ainda é
maior. Maior para quê? Ignoro. Desconheço o que raios disputamos afinal; o fato
é que somos limitados e incompetentes, nesse infernal pódio humano que nos põe
também infelizes por comparação.
Não faço
ideia se Rousseau pensou também nisso quando disse que a sociedade corrompe o
homem. Juro, entretanto, que consigo entender o movimento emocional de quem,
enfastiado da pocket olimpíada que vivemos, decidiu virar ermitão na caverna mais
acessível – ou abandonar as redes sociais, o que dá quasezinho no mesmo. Tenho
87% de certeza de que não se trata realmente de desprezar os outros; trata-se,
antes, de levá-los em conta excessiva, ou de desprezar quem nós nos tornamos em
prol do encaixe (motivado ou imaginário) nos outros. Não há sanidade que
persista nesse clipe de Carruagens de
fogo que protagonizamos internamente. É, talvez, uma das poucas realizações
que me fariam maratonizar um bocadinho a rotina, um graal à altura da câimbra:
descobrir a cura de nossa comparite, resgatar-nos de nossa compulsão de colar
na prova diária, criar a pílula que nos limpe do excesso de relativização
existencial, que nos traga uma paz de absolutice – com ou sem chuva, com ou sem
Alpes Suíços lá fora. Paz porque sim, pelo que temos e somos, não porque
fizemos mais ou fomos antes. A paz jeitosa e firme que não olha pela janela.
Nosso
estado (de graça) somos nós.
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