Acho
tristemente engraçado quando um aluno falta à aula e cinco dias depois, durante
o amofinante processo em que saio distribuindo vistos nos deveres, a criatura
me olha com o maior ar de perseguição e sofrimento que Deus lhe concedeu e
solta: professora, não fiz, NINGUÉM me disse que tinha trabalho, NINGUÉM quis
me dar o exercício. Fuzilo de volta, oscilando entre o riso e o ímpeto de
defenestração: vem cá, monstrinho(a), por acaso são OS OUTROS que devem correr
atrás de você para implorar-lhe a honra de fornecer a tarefa? é interesse
DELES, e não seu, providenciar que você se informe direitinhamente? e entre 458.974
colegas de turma, não houve UMA alma minimamente generosa que lhe emprestasse o
caderno para cópia – ou será que mal e mal abordaste UM ser humanito mais
indiferente que torcedor do Nepal em final de Copa do Mundo? Duas ou três
gaguejadas, vinte e sete sorrisos amarelos e o Seu Coisildo (ou Dona Coisilda)
faz cara de quem não vai admitir nem morto(a), mas sabe perfeitamente que deu mole.
Só faltava essa agora: em tempos de terceirizite aguda, até responsabilidade de
sanar a ausência se terceiriza. Não tarda nada e pessoalzinho por aí vai mandar
dublê pra formatura.
Lembrei
essas criaturas ensaboadas e terceirizantes por ter esbarrado com um trecho de
Goethe – creio que das Afinidades
eletivas – não diretamente relacionado, mas de espírito parente: “Não
conhecemos as pessoas quando elas se dirigem a nós; somos nós que temos de nos
dirigir a elas para saber como são”. Claro, nos dirigir ao coleguinha para
buscar o dever que nos cabe não é nos dirigir ao coleguinha porque nos cabe o
dever de buscá-lo; há um desnível de objetivos e maturidades. Mas há
representatividade no desnível. Desde crianças, trabalhamos com o fofo comodismo
do venha-a-nós-o-vosso-reino: chegue espontâneo o leite, a fralda, a cadeira, o
médico, o bolo, a roupa, a boneca. Porque precisamos, porque queremos, o mundo
se desenha. E no entanto o mundo também nos cresce, nos estica, e de tanto dar
se pede – e logo se exige – compreendido; cobra juros dos primeiros anos de
mamada passiva. Nossa tranquilidade egoísta vira um susto: como assim tenho que
dividir? como assim tenho que oferecer um help, ceder lugar, doar tempo, ouvir
problema sem despejar os meus? A realidade (constantemente) nos desorganiza e
nos chuta da preguiça absolutista que embalou o berço. Hora de acordar,
pequeno, a humanidade não tem o dia todo.
Até
a morte permanecemos descobrindo: sim, é com a gente mesmo, fora do berço a
responsabilidade é nossa. Somos nós que, querendo amar, estendemos a empatia ao
universo alheio e o vamos resgatar do fundo de seu absolutismo personalizado,
senão ninguém anda, nada muda, ficamos mudos e carentes dormindo cada qual em
sua torre ou concha, à espera do beijo acordador. Somos nós que obrigamos o
outro a falar do que o asfixia, como quem dá um safanão no diafragma do
engasgado, em vez de placidamente aguardar que o indivíduo já roxo dessufoque
em seu próprio ritmo. Somos nós que vamos acenar a bandeirinha branca do
pós-discussão, em lugar de dormirmos numa Razão dura, seca e desabitada – onde
o outro lado também dorme, porque as duas mulas preferem se amargurar com a
coluna estropiada a compartilhar uma ternura macia. Somos nós que viajamos ao
outro, até porque aquele que viaja é justamente o mais livre, o mais safo, o
mais sonhador, o mais buscador, o mais inconformado. De nadíssima serve a
curiosidade que não escarafuncha, a indignação que não se mexe, o amor que
suspira de casa, a amizade que não interrompe o naufrágio, a razão que fica
sozinha no barco e não joga a boia. Sem irmos nós a eles, o que somos?
tão bebês quanto, ou (se temos pernas mais fortes) mais bebês do que eles. Se
temos voz e não dizemos, se temos braço e não aninhamos, se vemos o desastre e
não impedimos, que raio de utilidade damos ao tremendo vácuo, ao silêncio ensurdecedor
que nos sobra e se segue à tsunami?
É
sempre a nós, se fortes, que cabe o primeiro passo. Alguém neste mundo
pré-escolar tem de ser o adulto da relação.
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