Uma das
falas estonteantes da estonteante Clarice, em Água viva, bem nos explica: “Estou livre? Tem qualquer coisa que
ainda me prende. Ou prendo-me a ela? Também é assim: não estou toda solta por
estar em união com tudo. Aliás uma pessoa é tudo. Não é pesado de se carregar
porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo”.
E por
isso, ai de nós, há a ferida que não adianta costurar porque reabre e
ressangra; há essa falta de paz contínua que nos invade no churrasco, nos
sacode na academia, nos soca na sala de aula – mesmo com todo o brigadeiro,
todo o conforto, todas as contas pagas, toda a Netflix, toda a serotonina, está
lá a hemorragia emocional, ou um só arranhão, ou uma até culpa de felicidade
que deixa a gente com cara de fratura exposta. Por isso: porque somos o tudo.
Quando saio para a padaria, um meu fragmento se apaixona do cheiro da fornada,
outra parte se abala com a inflação, uma terceira e uma quarta se chocam com a
magreza do mendigo à porta, a quinta não quer dar dinheiro por prudência, a
sexta pensa cadê a família, sétima e oitava choram encolhidas, outras tantas
salivam com os doces, outras algumas sentem remorso de não levarem guloseima
para os amigos, outras enfim estão mais amantes do tom vanilla do céu do que do
cheiro da fornada. E corre ao mesmo tempo esse tudo, porque somos tudo – o
relatório que falta e a prova a ser feita, o fim de semana próximo e o passado,
o comentário da colega e o presente do sobrinho, o #ForaTemer e o nojo dos
preconceitos, o medo de assalto e a cólica do segundo dia; somos esse caos com
perninhas que na verdade não dorme, por não haver fronteira onde o sol se
ponha. Não há jeito, em vida, de a gente se aquietar e terminar de ser, já que
tudo nos constrói.
Quem
nasce desses andaimes? Alguém que nunca viu neve e se projeta numa cena de
cartão de Natal, alguém que não sabe francês e suspira ante flagras parisienses
sem legendas, alguém que não consegue pegar no sono porque viu um passarinho
morto, alguém que descobre parecenças tão grandes com um autor do século XVII
que lembram ramos da mesma árvore, alguém que se abala com a partida de um vizinho
que nem conhece direito, alguém que não sabe por que um coral judaico o atinge
de lágrimas até a última fibra, alguém que pressente conexões inexplicáveis,
adivinha sensos partilhados, capta aflições e contentamentos coletivos. Ficamos
assim: presos numa rede em que o mínimo esvoaçar de mariposa nos influencia – e
quanto mais o tempo nos desbasta e sensibiliza, mais expostos e coletivos nos
tornamos; mais nossas anteninhas de vinil recolhem vidas no entorno, e as
adentram e as sofrem.
Por que
noss’alma constantemente deseja e se espanta? Porque tem saudades dos outros
retalhos que ficaram subentendidos em suas costuras.
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