Devo
ser, na face da Terra, a criatura que maior felicidade sente quando uma ligação
para o nosso número prova não ter
sido uma ligação para o nosso número. É da floricultura? da financeira Tal
& Tal? do laboratório de análises clínicas? da casa do senhor Magno José? –
Não é daqui não, sorrio eu luminosamente, deitando carinho na voz. Suspeito que
nem sempre acreditam não-ser-daqui-não, em especial quando é claramente algum
banco buscando um cliente arredio (vai saber em que encrencas o Magno José
andou se metendo), mas creiam, moças e rapazes que ligam errado: perdoo sua
falta de fé em nome da alegria que seu engano me fornece. No hard feelings. Meu
tormento grande, mesmo, é quando toca o telefone e é daqui sim.
Em todas
as galáxias existentes, descobertas e supostas, sou o ser que estremece de
maior horror e libera mais cortisol ao ouvir o toque nefasto. Desde pirralhinha,
e com tendências a piora. Fora raríssimas exceções de telefonemas esperados e
queridos, para mim quem está ligando é sempre a Samara, e sempre achei esse
barulho uma invasão, um sequestro: pare agora o que estiver fazendo no
sacrossanto recesso do lar e seja meu, apenas meu. Pare o programa, a leitura,
o dever de casa atrasado, o esquentamento do almoço, o almoço em si mesmo (oh,
hereges! oh, infiéis!), qualquer coisa mais própria e interessante e urgente e
pessoal; agora seu tempo é meu tempo, me pertença, fale comigo. Sei que sou
péssima pessoa, mas odeio invasões e sequestros inclusive metafóricos,
muitíssimo sobretudo quando estou em horário e lugar supostamente mais
livres e meus (o que mostra cabalmente, como já comentei, o quanto sou
incapacitada para a maternidade e a medicina). Graças a Deus não tenho ninguém
doente em dependência de mim, para quase ninguém eu poderia ser de fato
emergencial, e o mais provável é que qualquer pendência possa ser
resolvidíssima com a tranquilidade do e-mail – no máximo do Face – ou
simplesmente cara a cara, em hora de serviço. E nem me fale naquela desgraça do
zap, que, eu sei, também é escrito – porém sofre do imediatismo infernal do
telefonema (sem lhe faltar o barulhinho made in hell), e anda deixando todo
mundo psicótico. No dia em que eu me submeter a reclamações de que eu
visualizei mas não respondi, já podem aparecer lá em casa com meia dúzia de
enfermeiros altos, fortes e espadaúdos, porque o passo seguinte é eu começar a
picotar dinheiro.
Do susto
de eu visualizar mas não responder, no entanto, vós não morrereis: meu celular –
que só existe para EU mandar recados urgentíssimos – está eternamente deitado
em berço esplêndido, desligado e guardado; nunca ouviu falar em internet, o
menino. O que eu necessitasse fazer pela internet ou seria bobagem ou trabalho,
e nos dois casos poderia esperar. O que não pode esperar é o livro na bolsa,
que parou naquele ponto bonzão; os pasteizitos no forno, que já estão começando
a cheirar queimadinho; o banho tranquilo e privativo; o episódio inédito de Criminal minds (ligue pra mim agora, se
não tem amor à vida); o cochilo que talvez dê um jeito na dor de cabeça. A
existência, enfim – que, por mais entrelaçada nas outras, nem por isso deixou
de ser nossa, com nosso ritmo, nossas cores, nossas prioridades, nossas portas
emocionais abertas ou fechadas independentemente de fricotes ou metas de
produtividade alheias, nossas regras de convivência, nossos horários de
consulta ou de encaramujamento íntimo. O telefone, que começou humilde
substituindo os garotos de recados, em pouquíssimos séculos se tomou de
arrogância e agora se quer nosso rei, senhor e patrão; mas eu, que dou de
ombros para a audácia do bofe, não me importo de ser a dominatrix que o mantém
calado o dia inteiro para mostrar quem é que manda.
No mais, amor para vocês, meninas e meninos que erram o número. É chato
de qualquer maneira atendê-los, porém há mais leveza em saber que poderei estar
transferindo para o querido Magno José as desculpas para recusar a ligação.
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