Sempre
que alguém quer enfatizar que as décadas passadas, sim, é que eram porretas,
costuma tascar o típico: “No meu tempo...” – mania que me incomoda um monte. Um
bonde. “No meu tempo” em geral puxa memórias em tom de sépia, madeleines de infância,
primeiríssimos amores, anos dourados com bailes de formatura, vida sem tevê a
cabo (ou sem tevê, ponto), matinê, patins, Pogobol, a gente nos primórdios da
gente mesma, fresquinha de felicidade inocente. É um tudão lindo e falso;
primeiro, porque não recriamos com nenhuma eficiência o que supomos lembrar – é
um processo muito, muuuuito seletivo que embaralha as cartas conforme o
capricho do jogo, daí a facilidade de produzirmos “provas” imateriais para
qualquer tese. Segundo, porque botar o “nosso tempo” num pretérito
perfeitíssimo faz parecer que lá estamos inteira e igualmente, fechados e
embalados num passado a que já não devíamos pertencer e, portanto, expulsos do
restante da vida, mais conhecido como agora.
Se antes era nosso tempo e não atualmente, somos então mortos oficiais,
protagonistas de apocalipse zumbi, cadáveres adiados que procriam (nas palavras
de P’soa)? estamos – por gentil hospedagem dos que ainda não dizem “no meu
tempo” – habitando os acréscimos, caminhando para os pênaltis? vivemos já como
quem não vive? existimos como quem meramente continua?
Particularmente,
pretendo até uns 457 anos permanecer no meu tempo. Não significa que adotarei
todas as modas e redes, que amarei todas as feições e mudanças, que me
incluirei em todas as novas fomes, que compartilharei de todos os recentes
usos. Fosse eu assim vária e moldável, o tempo não necessariamente seria meu:
eu é que seria dele. Não; o tempo será bastante meu enquanto soprar vida, e meu
para criticá-lo, meu para volta e meia xingá-lo, meu para fruí-lo, meu para o
que der na tê-lho. Enquanto escorrer areia da ampulheta, vou eu mesma tingir o
tempo de minhas estampas, vesti-lo de minhas saias, dar-lhe meus costumes,
inscrevê-lo em meus motivos. Enquanto os ponteiros deslizarem pimpões, vou
modificar meu tempo, influenciá-lo, retocá-lo, cocriá-lo, codesenhá-lo, ajudar
a dar-lhe cara e voz, agir sobre o retrato que dele ficará na parede, estar
presente e agente em suas metamorfoses, barquear em suas marés, sentir em
primeira mão suas páscoas e seus desalentos, seus golpes e suas evoluções.
Meu
tempo não era exatamente o de criança, quando vivia em perdidas tolices e ainda
muitos receios, muitos preconceitos. Meu tempo não era completamente o da
adolescência, quando apenas começava a abrir voos, sondar impressões, ganhar
corpo e forma nos objetivos. Meu tempo é cada vez mais o de hoje, porque nosso
tempo está dentro e não fora; vem de nossas maturidades e decisões, muitíssimo
mais do que de nossas alegrias ingenuazinhas, vividas talvez com mais entrega,
mas justamente agarradas como uma tábua no mar, um refresco em meio à
insegurança. Quanto mais firmes, mais instruídos, mais informados, mais adultos
na inteireza do termo – mais moramos em nosso tempo, porque não o aceitamos com
o plano encantamento dos fracos e passivos, e sim o elaboramos com o pleno
arbítrio dos escolhedores.
Nosso
tempo não é maciamente o que nos fez e de onde viemos; é, sobretudo, o que dele
fazemos e para onde caminhamos. Ninguém, com mais genialidade que Millôr, o
resumiu e definiu para os que creem no mito do humano ultrapassado: “Olhaí,
garotada: quando eu digo ‘no meu tempo’, estou falando é do futuro”.
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