O
querido Mia Couto já escreveu que “o culto de uma sabedoria livresca pode
contrariar o propósito da cultura e do livro que é o da descoberta da
alteridade”. Suspeito instintivamente que entendi e concordo: quanto mais se
idolatra parnasianamente o papel pelo papel – o livro pelo livro, o estudo pelo
estudo, o acúmulo pelo acúmulo, o diploma pelo diploma –, mais se cria um
desvio poderoso em relação à utilidade do estudo, do acúmulo e do diploma, que
não é embalofar alguém de informações e títulos, e sim enchê-lo de vislumbres
(e deslumbres) do outro. Tecnicamente, não se estuda para depois dar o anel a
beijar e ser tratado de doutor; estuda-se para se ter acesso a desdobramentos
de nós, a simetrias e explicações de nós que jamais teríamos na vida
acordar-tomar-café-trabalhar-voltar; e se estuda, mais ainda, para criar
contato profundo com o que não somos e nunca seríamos, mas que precisamos
reconhecer como existente e perceber como pulsante, antes de respeitar como
legítimo ou abraçar como irmão.
E quando
digo estudar, não digo se entulhar de análises e teorias com data de avaliação
pesando sobre os ombros, mas ler com prazer sem ler apenas por prazer; ler
absorvendo, ler mastigando, ruminando, compreendendo, não buscando matança de
tempo sumária. Porque leitura é exercício de empatia, é a forma de transmissão
de gentes através dos séculos, e não merece nem prostração de joelhos, nem
indiferença de sala de espera: demanda amor. Só uma leitura bastantemente
amorosa pode nos ensinar que é possível haver Emma Bovary – nós que nunca
seremos adúlteros, temerários e suicidas, mas que em Emma o somos, chafurdando
assim no lado agudamente humano que (felizmente) nos falta. Só a leitura
generosa e entregue nos põe no peito o castíssimo amor de perdição de Simão
Botelho, a esquisita ambição vermelha e negra de Julien Sorel, o orgulho de Mr.
Darcy e o preconceito de Elizabeth Bennet, a exasperação romântica de Werther, a
amargura vingativa de Hamlet, a ingenuidade malucombativa de Alonso Quijano, a
angústia desamparada de Gregor Samsa, o eterno rebootar de Jean Valjean. Também
rebootamos quando ali nos botamos completos, mergulhados; somos Outros, estamos
em Outros, consequentemente não julgamos Outros. Dentro, realmente dentro da
leitura, aceitamos Outros tanto quanto nos aceitamos, já que ali e só ali
escancaramos a sala mágica do pensamento alheio, essa coisa que parece maldita
quando vista da janela e tão, tão familiar quando atravessamos a porta de corpo
inteiro.
Livro é a selfie do conteúdo, é a mensagem na garrafa navegando gerações
adentro. Reverência à cultura livresca, por si mesma, só tem aquele que joga
fora o individual da mensagem e armazena como troféu o vazio da garrafa.
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