Há
algumas semanas, fiquei deslumbrada ao aprender o conceito de foreshadowing (“prenúncio”, em tradução
aproximada): aquelas pistas que se salpicam no decorrer da trama – em livro,
filme, novela ou o que seja – para dedurar habilmente o que está por vir. Não é
um mero easter egg; o easter egg é plantado como brincadeirinha, assinatura,
referência, piscada de olho, porém não tem a função específica de antecipar
fatos. O foreshadowing, quando bem executado, é a joia da coroa, e aumenta exponencialmente
nossa loucura pela ficção.
Exemplos?
vamos a alguns, lindíssimos, do cinema: no primeiro Jurassic Park, lembram que o personagem de Sam Neill não consegue
fechar o cinto de segurança do helicóptero, porque as duas pontas são “fêmeas”?
Ele dá seu jeito, no entanto, ao amarrar um pedaço no outro. Pois a ceninha
inocente não está ali à toa: serve para anunciar que também as dinossauras,
todas fêmeas, darão seu jeito de se unir e multiplicar-se. Já no premiado Os infiltrados, cada personagem que será
morto aparece, em algum momento, perto de um X – grades que se cruzam, detalhes
de parede, elementos de arquitetura etc.; afinal, “X marks the spot” (“o X
assinala o local”). No instigante Clube
da luta, entre a montoeira de foreshadowings existentes, destaca-se um que
quase esfrega o gabarito na nossa cara: quando o Narrador espanca a si mesmo
para posar de vítima do chefe, nós o ouvimos comentar em off que, por algum
motivo, aquilo o fez recordar sua primeira briga com Tyler – o que revela
claramente vocês-sabem-o-quê.
Foreshadowings
são sensacionais na ficção, e nós adoramos (confessem) a doce entrega de sermos
“enganados”, pegos de surpresa mesmo com todos os autospoilers, reconquistados
pelo enredo ao destrinchá-lo após o the-end. Rimos de nossa incapacidade de
perceber as dicas, juramos que da próxima vez estaremos mais espertos, mas da
próxima vez continuaremos prontos para cair na mesma esparrela – só para
novamente podermos nos apaixonar a posteriori.
É divertidíssimo reolhar, ressignificar.
Na
ficção.
Porque o
foreshadowing está muitissíssimo mais presente do lado de cá da tela e das
páginas; apenas sem igual doçura na descoberta, e sem metade do valor
artístico. Há antecipações, há prenúncios, há sinais em quase tudo – e,
principalmente, em quase todos. O namoradão ultrarromântico que começa mandando
joia, urso, girafa, bombom, champanhe, trinta e sete dúzias de rosa vermelha, e
lá pela terceira semana de love pede a senha do Face, pergunta quem era aquele
cara, dá uma discreta puxadinha de braço: é fria, miga, e as próximas
temporadas podem ter locação em hospital e delegacia; personagem inocente e
amor verídico não caem no ciúme, na manipulação barata ou na barganha de
sentimentos. Sabe também aquela criança bela e fofucha que adivinha salivantemente
cada ponto fraco alheio, e o catuca de olhos brilhando? sabe aquelas mãozinhas
que nunca se impedem de cortar o rabo do gato e alfinetar o cachorro? Não estou
dizendo que seja um estripadorzinho em formação, mas, se eu fosse você, já
marcava uma hora com o psiquiatra do plano. E o sujeito de negócios que vai ao
seu encontro exibindo todo o branqueamento da arcada superior, só que (você bem
viu) passou reto e cego pelo porteiro? Quem sou eu para me meter no seu
business, mas, se aceita um palpite camarada, arrume outro sócio pra chamar de
seu. Um que saiba que só a integridade legítima é sustentável.
Estou
afirmando que cada ser se entrega todo no mínimo gesto, sem a margem de erro da
serotonina baixa, da enxaqueca, do estresse de um trânsito doido ou de uma
briga em família? Óbvio que não. Não somos roteiros oscarizáveis com 100% da
obrigação de encaixar tudo redondinhamente. Mas afirmo, sim, que uma parte tem
chance gigante de fazer delação do resto, que a essência morreria de exaustão
se passasse 24 horas sem berrar sob a aparência, que existem motivos para
contratar analistas de linguagem corporal, que a gente não acha pelo em ovo a
não ser que o ovo seja kiwi, que cada porçãozinha nossa pode até não spoilar o
futuro – mas pelo menos liga a luz amarela sobre o presente. Franqueza aqui: dá
muito mais trabalho melhorar do que piorar; não é razoável supor que os
defeitos se sublimem, etéreos, em vez de irem (como é mais natural) ladeira
abaixo. Olho vivo, então, no machismo do ato e da frase, para que não se acabe
dormindo com o inimigo. Atenção triplicada aos menores ensaios de crueldade,
para que jamais se noticie um dia de fúria. Foco nas mostras de (nenhum) caráter,
para que não se contrate o advogado do diabo. Faro fino na escolha das
companhias, para que não se chegue ao protagonismo de relatos selvagens.
Delicadeza no olhar, firmeza na análise, coragem na reação,
independência na atitude, humildade no pedido de socorro, zero onipotência na
avaliação, tranquilidade mas precisão, elegância mas energia – antes. Para que
não nos reste falar sobre o Kevin só depois.
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