Quando a
gente está quase demitindo a humanidade por justa causa, corre a notícia de que
um ator de 31 anos (não sei se americano) levou para morar em seu apê a vizinha
de 89, já que ela, diagnosticada com leucemia, iria precisar de cuidados
permanentes em casa, mas não tinha grana para manter uma enfermeira. Chris
Salvatore – o ator – partilhava vizinhanças e amizades com Norma Cook – a senhorinha
– havia quatro anos, e se arrepiou com a possibilidade de sua parça ir parar
num asilo: “Eu simplesmente não poderia fazer isso com alguém que é como minha
própria avó”. O fofo abriu crowdfunding, arrecadou verba, carregou Norma para o
novo lar, cuida da amiga várias horas por dia, usa o fruto da vaquinha para
pagar enfermeira quando ele não está e, num cúmulo de lindeza, pretende doar o
restante do dinheiro a pessoas igualmente precisadas, depois que a sra. Cook
virar uma lembrança querida. Não que ela tenha pressa: havia pouquíssima chance
de Norma sobreviver a dezembro, e aí está ela embalada para fevereiro – and counting.
Provavelmente sustentada por essa coluna de amor espontâneo que arrebentou as
chances e as estatísticas, e agora está matando a gente de ternura aguda.
Não há
idioma suficiente para me declarar encantada. Chris Salvatore (vou nem comentar
um nome tão simbólico) não está ligado a Norma Cook por sangue, sobrenome,
herança, obrigação ou promessa; não é seu neto, não é seu cuidador, não só não
ganha para adoçar a vida da amiga como sequer usou a desculpa – real – do capital
limitado. Chris agiu pela mesma razão coerentíssima que o lindo professor
Keating apresentou, em Sociedade dos
poetas mortos, para o fato de fazermos poesia: porque somos humanos. Ora,
por que acolher uma vizinha doente terminal, idosa, sem ter tempo, dólar ou
espaço sobrando? Porque se é humano, ué. Que pergunta. Por que o relógio fica o
dia inteiro ponteirizando, por que o cozinheiro tempera os pratos, por que a
impressora solta folhas cheias de letrinhas, por que a girafa estende o pescoço
e arranca o almoço da árvore com serenidade elegante? Porque é o lógico, é o
instintivo, porque sim. Fomos feitos assim; nossas especificações de fábrica o
exigem e nos impelem. A não ser, é claro, que os defeitos das peças nos traiam
ou que algo no ambiente nos quebre por mau uso.
Em nossa
plenitude, em nossa glória de humanos, exercemos a incondicionalidade – porque só
ela põe em exercício tudo quanto temos de habilidade e músculo. Os humanos que
são íntimos de seu potencial não precisam exibi-lo a fim de validá-lo: são-se, e pronto. Cristalinamente.
Segundas intenções são para fracos e inseguros; humanos profissionais devolvem
a carteira intacta, não sossegam até achar os pais da criança extraviada, deixam
um bolo para o porteiro, doam sangue antes do serviço, se metem na discussão
para defender a vítima de preconceito, votam pelos direitos de uma classe
economicamente inferior à sua, mandam gérberas só para enfeitar a sala, fazem
leitura voluntária. Não há preço em reais, objetivo prático, lucro em qualquer
prazo, aumento, promoção, lobby, incremento de popularidade, bateção de metas;
existe, em jogo, apenas o não jogo, a não disputa, a total descompetição, o
mais limpo e entregue interesse pelo que interessa ao outro. Dar conforto aos
companheiros de espécie é nosso jeito melhor de proteger a ninhada e tornar
viável a travessia.
A
humanidade vacila; mas, quando dá certo, dá MUITO certo e é o porque sim encarnado. Somos daquele
estranhíssimo grupo animal em que o coração só bate de verdade quando está fora
de si mesmo.
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