Diz que
existe (e eu até já escrevi sobre) uma doença chamada prosopagnosia, que impede a criatura de reconhecer rostos. Não
rostos do rapaz da farmácia ou da vizinha do 504, mas todos e os mais íntimos:
os dos próprios filhos, da mãe, da esposa. Uma tragédia psicológica. E no
entanto – matutava eu – todos somos prosopagnósticos afinal de contas, numa
coisa ou noutra. É certo que não chegamos perto do drama de uma síndrome rara,
mas temos sim nossas cegueiras específicas, nossas típicas incapacidades,
nossas tolices geradoras de folclore na família e denunciadoras, no fundo, de
nossas importâncias particulares.
Há um
par de anos identifiquei-me, por exemplo, com um meme fabricado por alguém
analfabeto em marcas de carro: “Se um dia eu for testemunha de algum crime,
espero que os bandidos fujam de Fusca”. Toca aqui, irmão. Carros só me
representam pontos móveis de quatro rodas que carregam a gente, e eu no máximo
leio cor e tamanho – ou placa; sim, entendo que é o carro dos meus sogros (meu
conhecido há década e meia) somente quando vejo a placa. Ora vão explicar
tamanha burrice. É o mesmo com outras certas maquininhas, como celulares: tem
os com botãozinho e os sem botãozinho, acabou-se. Se é iPhone,
iPad, Galaxy, Lenovo, Z9032, S4675, XPTO, K-9000 – perguntem à Nasa (embora eu
tenha certeza de que são todos X9). Já não bastam as 4.892 senhas de site?
esses psicopatas ainda querem enfiar mais alfanumerices na minha vida? Nada. É
COM e SEM botãozinho. Eu só uso COM. And proud.
Imagino
que bugigangas com várias peças simplesmente não me façam sentido no cérebro,
tipo conversa em coreano. Zero results na pesquisa. São utilitários ocasionais
demais para que mereçam ampliação do verbete. Já é o contrário com a percepção
de rostos: sem ter nada que se pareça com memória fotográfica, consigo por
muito tempo me lembrar deles, escavar identidades sob as mudanças, pilhar
semelhanças entre os olhos da garçonete e aquela atriz, entre o sorriso da
cantora e os trejeitos da recepcionista. Por quê? Ué, porque é uma língua que
faz sentido, porque sou miçangueira de humanas, lá sei? a ciência que disseque
e descubra. Do mesmo jeito, acabo registrando lindamente as canções com letra
(ainda que não saiba a letra), mas sou surda para a trilha instrumental que
tocou naquela cena incrível. Percebo uma completa sinfonia nas análises
sintáticas, mas sou jumenta em xadrez. Guardo facilmente nomes e turmas de
alunos, mas sou uma total palerma para me localizar no espaço. Tenho o carinho
de sentir a lógica de outro idioma (em nosso alfabeto, please), mas posso ver e
rever e milver o lance do futebol sem nunca apontar um impedimento na prática,
embora saiba descrevê-lo em teoria. Aliás, não sou páreo para texto teórico –
após duas linhas, tudo vira mandarim arcaico –, mas me mande decorar um soneto
pra você ver. Me dou intuitivamente bem com caixas eletrônicos e máquinas
vendedoras de bilhetes, mas vou olhar qualquer questão de probabilidade como um
burro olhando para um palácio. Ah! e não me peça para levantar o braço esquerdo
ou o direito assim, de chofre: faltei nesse dia e preciso antes estudar a matéria.
Fora do
campo motor, consigo reconhecer direita e esquerda muito bem, obrigada. Todo
colírio é pouco para se fugir à cegueira ensaiada que anda fazendo a gente dar
outra vez com a cara no poste.
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