Mas
confesso ter certas dificuldades com o “porque sim”. Não com o conceito de amor
gratuito – pois me parece líquido e claro que se deva polvilhar amor sem
miséria –, e sim com a prodigalidade em se autoconceder alegrias. Tipo: a gente
compra um colar espetacularmente divino e já sai com ele da loja, como se não
houvesse (festa) amanhã. Um amigo traz de mimo um champanhe de safra
translumbrante e a gente estoura ali mesmo, no mais pleno domingo comum. O
parceiro convida a uma fuga para as montanhas no finde, bem longe do níver, só
para celebrar o casamento em sua mera existência. A blusinha preferida, que
supostamente só poderia ver luz em dias santos e feriados, é vestida quinze
vezes por semana e ameaça falecer em combate. São fartas despesas de alegria
que eu docemente invejo: quem me dera economizar menos delas para o túmulo.
Não que
eu seja uma carmelita descalça. Embora sem exageros, me dou um ou outro
acessório quando a paixão é fulminante, e tenho uma ficha corrida na Estante
Virtual de humilhar perseguido da Interpol. Também já escrevi por aqui que todo
dia necessito de sobremesa mental, ou
seja, a perspectiva de alguma delícia que possa a-vida-é-belezar as horas
comuns: um sabor, um cinema, um capítulo inédito da série, uma experiência
inusitada. Ainda assim, a fome da spoonful
of sugar diária não me impede de viver culpada e avarenta. Não sei se é aquela
porcentagem de TOC que todos escondem, não sei se é herança de algum antepassado
que passou perrengue e estocava suprimentos; só sei que nasci com a detestável
tendência do acúmulo – não de dinheiro (ou não seria professora), mas de
chances e belezas. Raramente “desperdiço” bênçãos em ocasiões feijão-com-arroz.
Guardo felicidades em conserva. Deixo algumas envelhecerem na adega um, dois,
vinte anos.
Trago um
adereço de viagem e faço a maior cerimônia para usá-lo a primeira vez: pode
quebrar, arrebentar, soltar tinta, então que pelo menos tenha seu esplendor
numa formatura, num Valentine’s Day, num passeio superúnico, numa reunião maior
de família – num evento memorável o suficiente para poetizar até um possível
estrago no objeto querido. Encomendo livro de um autor predileto e mantenho o
negócio dando traça no armário, enquanto emendo uma leitura menos suculenta na
outra. Descubro que tal blusa e tal saia fazem uma combinação muito, muito
perfeita – tão perfeita que preservo religiosamente a dupla para os dias de
mais gente vendo, de mais foto rolando. E não tem nadíssima a ver com cifrões:
não compro nem tenho acesso a luxos. O que conta, o que gera ciúme e proteção
daquela pequena alegria, é a raridade do encontro, do afeto embutido. É a
impossibilidade de achar um semelhante. É a cor que calha, a simbologia de quem
deu, o conforto que traz, o medo de em outra situação precisar e não ter, o
pânico do arrependimento, o pavor da saudade. Sim, tenho pavor da saudade que
sente quem abre sua garrafa de glórias sem saber se é a hora certa.
Sou
doida, claro, e por me saber doida é que vou fazendo um exercício de
desencanation e de libertação do ritual. Rituais são fronteiras importantes e
ajudam a memória, mas tão casmurros podem se tornar que acabamos parados na
alfândega. Free o direito à alegria, abaixo a burocracia: menos papelada a ser
preenchida para nomear ocasiões especiais, menos carimbos de datas e números, menos
selo-rótulo-registro se quiser voar. Para comemorar a lua, a taxa não é alta;
festejar o sol não pede identidade: pode-se usar lingerie novinha sob a roupa
do trabalho, sair para dançar em qualquer terça-feira, comprar flores frescas
sem haver visita, desfilar de salto alto dentro de casa (não desfilo nem fora,
mas tem quem curta), brincar de arborismo num sábado de agosto. Significados
são coisa nossa, e onde criamos uns podemos inventar novos. Por que não plantar
urgência em celebrar o aniversário de José de Alencar, a aprovação da prima em
oitavo grau no Enem, o Dia Mundial do Mágico (que, aliás, é hoje; partiu?), o
fato de ter amanhecido às 5h51, os dez anos da peça de escola em que o filho se
vestiu de curumim?
Só é preciso o nosso apetite dando sim, sim, sim, sim.
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