Vamos
combinar: nunca seremos completa e azulmente felizes nesta terra, nem em outra
nenhuma debaixo do sol. Um tem caviar no almoço e na janta, mas não a companhia
dos herdeiros; um segundo ama e é amado, mas lhe coube uma saúde lascada de
horrível; aquele da esquina é a robustez em pessoa, mas está sendo despejado do
apê; um quarto é o gênio do pôquer mas canta como uma hiena com bronquite, e
nunca realizará o sonho de integrar um coral; seu colega de faculdade tem os
filhos mais doces do universo, mas não supera a mágoa de seus pais continuarem
preferindo o irmão do meio. Que fazemos então desse enxugamento de gelo
psicológico, sem precisarmos nos atirar sem boia da primeira ponte? Vai uma
dica da experiência própria: a gente acerta com a gente mesmo de ser feliz
melhorando de infelicidades.
Cuma? Me
acompanhem. Fui uma criança feliz como as crianças podem ser – tinha papai,
mamãe, vovó, maninha, lanche com broa, tia visitando, programa do Bozo, gibi da
Mônica, parquinho aos domingos. Nenhuma queixa, tudo nos conformes. Só que as
crianças não sabem estar sempre nos conformes (se você acha que sim, tem
alzheimer seletivo). Crianças habitam o mundo há pouquíssimo tempo e não têm
elementos para entendê-lo, nem, portanto, para defender-se de suas paranoias
particulares. Crianças enjoam em vinte minutos de ônibus porque não compreendem
as distâncias, que são sempre assustadoras e enormes; não sabem ainda domar a
sede, a fome e os chamados da natureza em benefício próprio; não são as donas
do dinheiro nem das decisões tomadas a respeito dele; não conseguem medir suas
dores, urgências, necessidades; não desvendam satisfatoriamente as intenções e
cobranças alheias; não são maduras para digerir novos conhecidos com a
naturalidade dos adultos. E pior: geralmente não têm instrumentos para
verbalizar, ou ao menos representar seus vácuos, seus sustos, suas abstrações –
que existem tão confusa e exclusivamente nelas mesmas. Crianças administram uma
psiquê assustadiça, impressionável e flutuante; tudo arde demais, dói demais, é
triste demais, longo, longe, difícil demais. Ou seja: Deus me livre e guarde de
voltar a essa época, por mais externamente feliz que eu tenha sido, por mais
dentro das condições normais de temperatura e pressão que eu tenha crescido. Em
si, toda criança é um bololô. Tem infelicidades impalpáveis e fantasmagóricas.
Que melhores me são, agora, as infelicidades práticas e desmonstrizadas da vida
adulta!
Meu
filho, confesse: você também não gostava de estudar (pelo menos não de estudar
o que lhe enfiavam goela abaixo), e, se acredita que gostava, sofre de excesso
de romantismo ou de péssima memória. Todo mundo tem seu freddy krueger
acadêmico. Matemáticas, especialmente, me tiravam lágrimas e quase sangues; o
medo de falhar ante a avaliação dos colegas me calafrizava as horas; semana de
provas bimestrais me deixava a perna e os ombros doloridos de tensão. Amei
desde logo as infelicidades da faculdade: tenho de estudar latim e nunca mais
nadinha com número, maravilha! Hoje os próprios enfados do latim, as obrigações
de anotar matéria e redigir monografia só em pensamento me arrepiam, e eu
abençoo os dramas de professora em comparação com os de aluna. Minhas
definições de desgosto foram atualizadas, e, felizmente, tendo a achar que a
grama do eu atual é o jardim de Versailles perto dos anteriores capins.
Esse é o
lance: eleger os pesares razoáveis e, na medida do possível, ir eliminando os
mais impraticáveis. Se a dor maior do dia é botar o pé fora de casa na
megalópole, estude a chance de ir mais para o interior, mesmo com a chateação
de ganhar um pouco menos. Se só falar no trabalho já o faz apalpar o saquinho
de vômito, veja se não cabe uma guinada radical na profissão, ainda que
signifique abandonar colegas amados. Se a arritmia começou por causa dos grupos
de WhatsApp, famintos como tamagotchis e canalhas que nem tabloides, procure o
botãozinho mágico do “excluir” e lide, mais saudável, com algumas ausências. Creia
que há muito pouco – além de fome, sede e força – que realmente nos obriga: nem
um sonho caduco de infância, nem um o-que-vão-pensar em família, nem o diploma
emoldurado no corredor, nem o casarão que veio no inventário, nem o escritório
que chegou de herança, nem o prestígio social, nem a opinião cochichada entre
vizinhos, nem as roupas já compradas, nem um dígito no contracheque nos retiram
o peso e a leveza da escolha. E na escolha há troca, não milagre; há
continuidade, não solução. Enquanto estamos vivos, nada é solução porque tudo é
mudança de fase – cada qual com sua ninhada fresca de mogwais fofinhos ou de
gremlins alimentados após a meia-noite.
A
andança é compulsória; escolhemos o sapato. Não nos falte nunca a agudeza de
calçar a vida que menos nos aperta.
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